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quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Uma impressão sobre o nosso YELLOW


É possível se perguntar "quem sou eu?" sem se perguntar "de onde eu vim?"? O homem amarelo de Yellow Bastard desperta para a consciência de si justamente ao tomar conhecimento da sua origem. É ao descobrir qual o ventre que o carregou e qual a terra em que nasceu que sua condição de extraterrestre se revela. O interessante é que esta revelação existencial é também revelação da dimensão política de sua existência. Ao descobrir a história do ventre que o carregou e a história da terra em que nasceu, o personagem dá-se conta da relação entre seu nascimento e as assombrosas circunstâncias que o engendraram. O que vemos em cena, a partir daí, é a vertigem de sua tomada de consciência.

Foto de Thaís Grechi


É bonito pensarmos em um estado de consciência vertiginosa. A gente associa consciência à ordem, coerência, clareza, controle, e estar em vertigem seria a experiência oposta: caos, paradoxo, indefinição, perda do eixo. A consciência vertiginosa seria a lucidez no desequilíbrio, a clareza na convulsão do caos, a atenção integral do corpo diante da febre de uma verdade. O extraterrestre de Yellow Bastard é tomado por este estado diante do choque da revelação de sua história, e é na potência deste estado que cria sua resposta ao pavor e ao medo. Opta pela ação ao invés da paralisação. É bonito pensarmos que em estado de consciência vertiginosa somos capazes de gerar respostas inventivas à barbárie.

Na cena em que o personagem escuta a história da sua origem, a qualidade de presença do ator Márcio Machado também tem muito deste estado. Em contraponto às minuciosas e precisas partituras físicas da primeira parte da peça, que correspondem, dramaturgicamente, ao cotidiano automatizado do personagem, o que vemos agora é um corpo vulnerável, um corpo resplandecente porque vulnerável. O rigor físico se mantém, mas aqui o ator, ao invés de controlar seus movimentos, deixa-se afetar por eles. Ao invés de dançar, é dançado. Me parece que a partir desta cena Márcio aciona uma qualidade de presença mais receptiva do que ativa, mais permeável e porosa à imprevisibilidade de ser e de ser cenicamente. Sua respiração se evidencia e torna-se ação. Fiquei com a impressão de que estava assistindo a um ator não sabendo, no melhor sentido do termo. E habitar o não saber é tão corajoso. A gente tem medo. A gente tem medo do nosso próprio fulgor.

Por Tomás Braune

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Semana de montagem. Semana de edição.

De fato, por muito tempo, o momento que eu mais anseio é este: o da semana de montagem. É raro, fazendo teatro no Brasil, ter o teatro com antecedência. Geralmente as montagens são feitas de modo apressado e é justo neste período - de montagem - onde muitas vezes se encontra o espetáculo, quando se torna realmente possível editar a peça (com trilha sonora, iluminação, no espaço e com o cenário, com figurino e demais escritas que são fundamentais à criação).

No caso desta estreia, com o patrocínio do Banco do Brasil, estamos entrando no Teatro III com oito dias de antecedência à nossa estreia. Não é muito, mas não é pouco, de forma alguma. É o tempo necessário para reconhecer o espaço, para sentir o tamanho dos gestos e movimentos, dosar as intensidades da cena e por aí vai. Nesse caso específico, nosso cronograma diz muito respeito à chegada do cenário. Ele chegará fracionado, um pouco terça, um pouco quarta e, apenas na sexta, estará "completo".

Prancha cenográfica - Por Elsa Romero


Muito ainda a ser descoberto nesses dias de montagem, de edição do espetáculo. Mas é assim mesmo. Há algo anterior que foi fundado. A relação como o ator Márcio Machado agencia nossa trama está potente, ele tem a peça nas mãos e, talvez, agora, nessa reta final, para não estarmos no controle, vem todo esse aparato cênico e chacoalha um pouco a nossa segurança. Tudo sairá bem, naturalmente. Estamos atentos a esse fato, à necessidade de um constante cuidado para que tudo sirva à cena, ainda que possa desnorteá-la um pouco.

Especificamente, aquilo que ainda não faço ideia diz respeito à dimensão visual e sonora do espetáculo. Não consigo sequer imaginar. Ainda que tenhamos feitos reuniões, trocado sobre os materiais e as materialidades, ainda assim, não faço ideia. Não sei qual tamanho, quais cores - de fato - vão ocupar o espaço da cena. Não faço ideia do que vai acontecer quando cenário e figurino se derem "oi". Não sei os volumes da trilha, não sei a luz, nada, mesmo. Porém, confio. O que me resta é confiar e, não como um mero resto, confiar é a nossa medida, o nosso valor, nossa força maior.

Confio nessa profusão de incríveis artistas que nos acompanham nessa criação. Confio no temor deles, confio integralmente em sua dúvida que, mesmo hesitante, segue o fluxo do movimento criativo. Estamos compondo, buscando, vagando e afirmando, refazendo e perdendo, isso para mim é estar em criação. Por isso reforço: semana de montagem é semana de edição. Quando as ações se inscrevem no espaço e vamos, através do tempo (timeline), cortando, costurando, compondo juntos as linhas de ação do espetáculo.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Mês da estreia...

Junho de 2019. Chegou. Hoje é dia 04 de junho e em 22 dias estrearemos o nosso YELLOW BASTARD. Tudo segue em movimento. Ontem fiz uma ligação de vídeo com a nossa cenógrafa Elsa Romero, troquei mensagens com toda a equipe e, após passar uma semana em Buenos Aires (fazendo outro trabalho), voltei para ficar. Estamos com as cenas todas levantadas e bem trabalhadas. As duas últimas cenas - cenas 8 e 9 - foram levantadas na semana passada e ontem pelo Andrêas e o Márcio. Volto à sala de ensaio daqui a pouco para afinarmos juntos o fim da nossa narrativa.

Tudo caminhando também com o patrocínio, com o patrocinador, o Banco do Brasil (pelo Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB). Muita documentação, assinaturas etc. É algo muito novo para a companhia, logo após completarmos dez anos de trajetória e muito trabalho. Eu e Clarissa Menezes, produtora, estamos cuidando de tudo e acreditamos que tudo corre bem. Muito a fazer, muito a decidir, os prazos minimamente protegidos, o desejo imenso, querendo fazer acontecer. Ainda não sei dizer o que é essa criação, nem muito bem qual é a cara dela.

A calma, a calma... Ela é tudo em um processo criativo. É agora o momento em que as peças começam a se encaixar e, juntas, trabalhando juntas (as diversas ações...), vemos brotar uma nova criação. Já sei disso faz muito tempo, mas é lindo que seja sempre tão novo e tão inédito.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Processando o processo de criação...

Faz meses não escrevo nesse blog. O que não quer dizer - definitivamente - que não esteja escrevendo muito. O processo de YELLOW BASTARD segue firme, intenso, revelador e um tanto desafiador. Faz parte do caminho. Estamos a seis semanas da estreia, que será no dia 26 de junho desse 2019. A narrativa do romance foi finalizada já faz umas semanas, bem como a dramaturgia. Nas últimas semanas, fizemos passadas da cena 1 até à cena 7, contando sempre com a presença da equipe de criação e de amigas e amigos convidadxs. É um momento oportuno para testarmos essa loucura que estamos criando.

Loucura? Ora, sim. No mínimo, algo fora dos padrões. Em primeiro, fora dos nossos padrões. E isso é o mais lindo e, talvez por isso, o mais louco. É lindo - assim eu sinto - ver uma criação se criando e começando a mostrar sua cara, seu corpo, sua força. É estranho. Eu não sei o que é isso, apesar de estar ali, criando junto. É espantoso o jogo das formas e das intensidades, assustador e apaixonante a trama dos sentidos e de tantas sensibilidades. É tão bonito ver o Márcio reagindo a tudo e compondo, nunca parando de compor, buscando entender e confiando destemidamente no medo que o sustenta. E trabalhar em companhia, junto às pessoas que você admira, isso realmente é o que me importa.



Para além das resoluções inúmeras e da criação propriamente dita, que segue em fluxo, seria preciso que eu conseguisse criar distância, sabe? Olhar para essa criação na distância para fazer algumas perguntas bem violentas, bem rigorosas, cruéis, eu diria. Seria preciso perguntar a YELLOW BASTARD qual é a dele. Qual é a sua, hein? O que você está querendo? Que gesto é esse que você está fazendo? Com qual propósito e, obviamente, para quem? Você fala com quem que não apenas consigo mesmo? São perguntas que não cessam e que não precisam cessar. Fica - e vale - o movimento do processo criativo.

Estamos descobrindo a nossa cenografia, a nossa iluminação, em breve o figurino, a trilha sonora e a voz, o corpo. Estamos moldando e compondo - fazendo escolhas juntxs. Estamos em processo de criação e de produção. Criação-produção, como costumo dizer, tudo enredado. É um privilégio poder fazer e um privilégio maior ainda fazer tudo isso com carinho, amor, escuta e cuidado. Isso é o mais difícil, ao mesmo tempo, é mesmo o mais essencial. Comemorando dez anos de Teatro Inominável, YELLOW é nossa décima criação. É um presente estar vivo para criar essa nova criação.



Acordei hoje cedo e senti vontade de fazer a imagem anterior. Ela desenha uma espécie de cronologia da cor neste espetáculo. São as mutações tonais da pele de nosso protagonista. Ele muda de cor. Começa branco, passa para amarelo, depois queima - vermelho, queima até ficar preto e no mais profundo de sua "humanidade" incinerada, faz brotar o rosa-pink. Que loucura, que loucura, que magia, que amor, que delícia. Adiante, sempre adiante!

domingo, 31 de março de 2019

Até o instante em que estamos

Por vezes esse blog me volta como um diário, um lugar onde escrevo sobre o caminho percorrido e não necessariamente sobre a criação da peça em si.

Fato é que neste mês de março eu quase nada escrevi. O motivo é que estou terminando de escrever o romance e tem sido um desafio tremendo. A última postagem fiz antes de ir para Vassouras, onde passei o carnaval a escrever.

Hoje, quase antes do início de abril, ainda tenho muito a fazer. Nessa primeira quinzena de abril o meu foco é finalizar o romance e as cenas finais. São mais cinco capítulos-cenas e nunca antes senti tanta dificuldade. É óbvio. Aquela coisa do desfecho, de reunir - de alguma maneira - tudo o que foi
apresentado até ali. E, sobretudo, a presença-aparição-surgimento de um novo cenário: Marte.

Por vezes me pego pensando em verossimilhança, mas não como uma exigência que me obrigaria a tornar "real" toda a dimensão "poética" (ou fantástica) dessa criação. Há várias verossimilhanças e penso que a mais importante é a interna ou interior, a própria diegese dessa trama.

Adiante, Liberano. Você já chegou em Marte agora é destruir tudo: espalhar amor!

domingo, 3 de março de 2019

Terreno-Marciano


Vejo como um raio-x. Uma tomografia do fora. Do fora dele, deste personagem. Por fora, tudo azul, literalmente, tudo azul. Uma paz, uma certeza, uma confiança de si (ainda quando há chuva). Sapatos lustrados, rosto limpo, pele sem acnes ou outros traços. Tudo limpo, suficientemente limpo a ponto de sugerir que talvez a própria noção de humano tenha sido ultrapassada, vencida. Um homem ciborgue, homem cujas funções biológicas - fisiológicas - estão todas em modo azul. Estão todas amenas e tranquilas, apaziguadas e contidas. Talvez seja forçoso imaginar um ser assim, mas é preciso ponderar - dada a vertigem de nossa sociedade capitalística - é preciso ponderar que sim, alguns seres estão buscando a vida-capa-de-revista. E isso não é um problema. Não é um problema até o momento em que você - que estava trancafiado nessa casca - resolve aparecer, irromper, jorrar, desfigurando tudo o que estava tranquilamente arquitetado.


Aí o seu dentro vira fora. O seu dentro, profundo e íntimo, quase um segredo, segredado, o seu dentro subitamente se expõe, te expõe e já não há mais nada a fazer exceto aceitar que escorra de dentro aquilo que você sempre foi, mas nunca se permitiu ser. Há buracos dentro de você. Há líquidos imiscíveis que se misturam. Incoerências que sobrevivem a despeito da sua tentativa de ser normal, de ser legível e belo, de ser rico e pleno, de ser, enfim, um homem de sucesso, mais um homem de sucesso. É como se fosse um raio-x do seu íntimo: agora ele está mexido, é menos bonito do que as aparências anteriores e azuis, no entanto, ainda assim o seu dentro é algo, é você, te constituiu, você não poderá nem conseguirá abandona-lo tão facilmente. Há ranhuras, texturas outras, há cores sem nome e equilíbrios precários. Há um corpo que já não é mais aquele forçosamente organizado. Há um revés, um azar mesmo, algo que te impedirá - para sempre - de voltar a ser aquela calmaria.




sábado, 23 de fevereiro de 2019

Sobre um homem como (quase) todos os outros

Era sobre isso que eu gostaria de refletir um pouco. Agora. Sábado. Quase meio dia. Tenho pensado muito sobre como podemos criar uma peça que seja mais comum ao mundo do que propriamente estranha. Pensado sobre a estranheza como uma dobra do comum, como uma revelação que é descoberta, que está ali premente, mas não ainda evidente. Acredito que esse tipo de investigação - esse elo primeiro com o espectador - está ocupando a minha atenção faz alguns anos.

Naturalmente, a cada novo trabalho, a cada nova criação, a investigação ganha outros contornos. Não há uma investigação certeira. Quando afirmo estar investigando algo é porque minha atenção vê isso (o tempo quase inteiro). Então é uma ocupação, algo que me ocupa, algo que me faz perguntar de modo mais intenso os propósitos de uma criação em teatro. (Não estou falando sobre a peça, propriamente sobre o que é a peça). Talvez queira falar sobre para que uma peça. Para quê? Ou antes: para quem?

As perguntas voltam e se revoltam. Em SINFONIA SONHO isso foi bastante pensado e praticado. Talvez não muito, mas estava ali a preocupação de laçar a atenção do espectador para, no caminho da narrativa, fazer com que ele se confrontasse com outras coisas, outras sensações, com alguma diferença (em relação ao comum). Isso, de acordo com Eugenio Barba, é a dramaturgia, é o trabalho das ações.

Em YELLOW BASTARD, creio, a questão está se revelando em muitos aspectos. No espaço, primordialmente, quando em sala de ensaio nós já sentimos que a proximidade do ato teatral com o espectador é bem rente. A noção de espetáculo desmorona integralmente. Não consigo sentir ou visualizar qualquer tipo de distância física: não vejo um espetáculo teatral, não vejo uma ação pictórica, em quadro, em tipologia espacial italiana.

A proximidade entre os corpos. A proximidade da narrativa. Uma narrativa comum, quase um flagra: vemos e acompanhamos um homem - um advogado de quase meia idade - que, subitamente, entra em questão com alguns aspectos de sua humanidade. Eis o nosso lugar, um homem em questão, a derrocada de um tipo de homem - vencedor - que perdeu a vida na tentativa de ganhá-la, no esforço de conquistar e vencer. É uma excelente proposição, eu acredito. Precisamos não apenas encená-la como também abrir espaço para o que possa vir a partir dessa derrocada.

O que surge? Um homem branco e vencedor que despedaça na nossa frente. E daí? E daí que a nossa trama talvez queira dizer que - a despeito desse projeto masculino e machista do homem que vence, que é vencedor, que vencerá - a despeito dessa trama da vitória há uma vida mais enérgica, mais pulsante - ou ao menos: uma vida outra, outra vida - sendo copiosamente amortecida, apaziguada, e que pouco a pouco vai minguando a vitalidade desse ser.

Há vida para além da vida que nos disseram ser a nossa vida.




Há humanidade para além do homem.

Fazer tremer o homem branco vencedor. Coloca-lo no espeto. E depois, apenas depois, ver como ele faz para se segurar. Ou, antes, ver como ele se esvai e, nisso, abre outras possibilidades para si e para o outro.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Encontro em companhia

No encontro de ontem - nosso encontro de número 16 - fizemos uma partilha de dois processos de criação do Inominável que estão acontecendo simultaneamente. Um deles é uma criação (ainda sem título) com performance de Laura Nielsen e o outro é YELLOW BASTARD. Na criação de Laura, a direção é da inominável Natássia Vello - com assistência de Clarissa Menezes - busca, a partir de um texto-provocação que escrevi em dezembro, reencontrar as ancestrais (reais e inventadas) da atriz.

Na semana passada, estive num dos ensaios das meninas e, com espanto e alegria, percebi que o processo delas conversa muito com o nosso. Sugeri, então, que dividíssemos a sala de ensaio para que ambas equipes pudessem ver o que cada criação está buscando. Por isso, tento agora destacar alguns pontos que me parecem interessantes de se destacar:




ESPAÇOS E TEMPOS

Ambas criações possuem relações fundantes com as dimensões espaciais e temporais. Num projeto, os espaços e tempos se sobrepõem e misturam de maneira evidente, sem nenhuma tentativa de organização linear e causal. Este é YELLOW (pelo menos, até o presente momento). No outro, há um tempo - uma hora inerte, a do encontro de Laura com suas ancestrais e também com o público que estará na sala de apresentação - e um espaço (a sala de uma casa); no entanto, pelo jogo da criação, o tempo presente é pretexto para que outros tempos possam surgir e ser (re)visitados.

Em outras palavras, o que essas criações operam é o jogo teatral, poderia dizer, por excelência. O tempo presente - o tempo da ação teatral - é um espaço-tempo disponível ao movimento, aos trânsitos e deslocamentos (espaciais e temporais). Firma-se o pacto para, no caminho, desnortear tudo, abrindo novas relações de velocidade e lentidão - de afeto - entre a cena e o público que a vê.

BIOGRAFIA E FICÇÃO

As duas criações também fazem um uso absolutamente profano das biografias da atriz e do ator. Seu texto biográfico aparece sem a necessidade de se autodeclarar biográfico. A malha biográfica serve como matéria para a composição da dramaturgia final que é, propriamente, a cena (onde serão reunidos os espectadores, os performers, o texto, os gestos e as ações, enfim, o acontecimento artístico em si). Quero dizer que a biografia perde um valor maior (no sentido de que perde a sua aura, a sua possível inércia, a mesura que faríamos normalmente a ela) e vira algum tipo de matéria que pode ser usada e deslocada, destruída e refeita.

Nesse sentido, a ficção assume aquilo que tanto friso a partir de Jacques Rancière:

Ficção não é criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas e entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. Esse trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 64-65.




FEMINISMOS E ANTROPOCENTRISMOS

Impossível não perceber que, em ambas criações, o homem gênero masculino é posto em questão: seja porque a mulher salta e se afirma na sua potência presencial e ancestral; seja porque um homem branco vencedor, subitamente, descobre que dentro dele vive outro (um alienígena). De certa forma, a partir de Virginie Despentes e sua TEORIA KING KONG, percebo que há um esforço delicado não em maltratar a figura homem gênero masculino, mas, ao contrário, um esforço - delicado - em tornar perceptível que a lógica binária dos gêneros já não dá conta da estranheza que sempre nos constituiu e que agora, por motivos inúmeros, parece querer saltar, aparecer, se lançar e se fincar em nossas existências cotidianas.

O TEXTO TEATRAL COMO MATÉRIA, MATERIAL, MATERIALIDADE

Por fim - escrevo para Laura Nielsen, Márcio Machado e também para o diretor Andrêas Gatto e a diretora Natássia Vello:
Eu, como dramaturgo, ainda mais como artista integrante de uma companhia teatral, tenho encarado o exercício da dramaturgia como um meio do caminho. O que isso quer dizer? Quer dizer que o texto escrito, impresso e entregue, antes de ser uma chegada, é assumidamente um caminho, um convite à experimentação. Penso, assim, que não é possível ler um texto buscando nele a realização final, as chegadas, os contornos precisos da cena ou da fala do ator e da atriz. Destituir o texto do seu trono não é fazer pouco caso dele. Antes, é valoriza-lo ainda mais, pois não mais o tratamos como um manual, um projeto de verdade (fascista, portanto). Destituir o texto de seu trono é reconhecer que as autorias e autoridades (o homem, o autor, o texto, a obra fechada) estão morrendo e precisam morrer. Perde-se o contorno (prisão) do texto para compreender as palavras como matéria e, enquanto tal, como potências do por vir. A palavra pode. A palavra pode anunciar outros textos, outros sentidos, para além dos mais imediatos. A palavra volta a ser matéria, antes de ser sentido. Para que isso aconteça, é preciso usa-las não como quem chegou a algum lugar, mas como quem está abrindo lugares e mais lugares que, em sala de trabalho, serão contornados, compreendidos e intencionados. Se a palavra volta a ser matéria, logo, o nosso trabalho volta a ser artesanal, volta a ser um longo trabalho de composição, montagem e modelagem.
Que delícia tudo isso.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Tempos, espaços, inúmeros...

São considerações imprecisas, nascidas do calor da sala de trabalho.

Tenho observado - no trabalho de composição e uso do texto - que a noção de um tempo Kairós está se alastrando também para o espaço. Quero dizer: por estar escrevendo um romance que, na sequência, é desfigurado e vira um texto a ser utilizado pelo ator, os tempos já se revelam inúmeros: a fala presencial, a descrição presente, as memórias que voltam e mesmo tempos indefinidos, quase como não-tempos.

Por extensão, também o espaço é desfigurado, perde seu eixo: espaços surgem e desaparecem, eles se sobrepõem e coexistem lado a lado. Há uma espécie de jogo análogo (um regime analógico?) onde distintos espaços se sugerem e nunca o que temos é apenas um espaço. Como também nunca temos apenas um tempo. Essa instabilidade tempo-espacial me parece fundamental à trama que estamos contando.

Seria preciso se perguntar no que esse jogo serve ao espectador?

As perguntas ficam ainda em aberto, buscando - não respostas - mas sensações distintas para este processo criativo. Fui pesquisar Kronos e Kairós e encontrei - era óbvio, não? - algumas pinturas de Salvador Dali. Estou animadíssimo:

Melting Watch, 1954 by Salvador Dali

The persistence of memory, 1931 by Salvador Dali

Não saberia ler essas pinturas de imediato, mas conservo elas bem próximo a mim a partir de agora. Para além da desfiguração do relógio enquanto marca de alguma linearidade (apesar da circularidade do projeto), para além disso, interessa-me uma espécie de desfiguração do espaço, algumas sobreposições de matérias e corpos.

Segue tudo em aberto, se encontrando, se perdendo, se firmando...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Encontros #5 a #11

De fato, vai ficando difícil registrar cada encontro. De alguma forma, considero essa dificuldade interessante porque ela manifesta como a coisa vai se revelando no tempo dela, sem ser refém de uma teorização constante de cada passo. E é isso mesmo, posso confirmar, a coisa vai se escrevendo no decorrer dos dias, quer se intencione ou não, ela se escreve, vai se compondo.

Neste momento, após um mês de trabalho - e precisamente 11 encontros em sala de trabalho -, conseguimos não apenas fundar um universo narrativo como também entender, minimamente, como o processo criativo poderá seguir. Hoje, fizemos o nosso décimo primeiro encontro, apenas comigo e com o Márcio, e reconhecemos alguns aspectos que vou tentar registrar a seguir.

Não é uma peça sobre um assunto, não é sobre a intolerância ou sobre o fascismo. É uma criação artística que coloca em cena um ser humano em questão, em plena atividade do questionamento (de si). Muito falamos sobre "O Narrador": tanto o ensaio de Benjamin, a performance do Inominável e a figura, propriamente, de alguém que narra, conta histórias. Vai se firmando um desejo muito honesto e radical de que este espetáculo é a confidência, presencial, de um homem que em dado momento de sua vida se questiona sobre quem é, sobre quem se tornou, quem deixou de ser.

Hoje, disse ao Márcio a palavra "neoliberal". Conversávamos sobre como o projeto neoliberal opera essa plástica padronizadora em nossas subjetividades e singularidades. Ele solapa nossa especificidade e nos torna unicamente produtivos ao seu processo (sempre autofágico, demasiadamente acelerado e brutalmente desumano). Disse a fala de uma dramaturgia que escrevi ano passado: "eles produzem o remédio para a doença que criam". Nem sequer falávamos, por exemplo, sobre o crime ambiental cometido pela mineradora Vale. Em suma, falei de tudo isso para reconhecer a importância de voltarmos a ser quem somos, voltarmos às origens e à barbárie de nossos desejos mais infantis e primários.

Kairos
Afresco do século XVI
por Francesco Salviati

Ao telefone, à tarde, conversando com o diretor Andrêas Gatto, reconhecemos que a peça trata disso. Relembrei a ele o subtítulo da autobiografia "Ecce Homo" de Friedrich Nietzsche: "Como se tornar aquilo que se é". Porque é preciso muita luta e agressividade para se permitir ser, socialmente, quem de fato sentimos que somos. E, antes disso, é preciso muita força para ser quem se é, em primeiro lugar, a si mesmo.

Nosso personagem está descobrindo que ele é alguém que foi escondido e esquecido dentro de si próprio. É a vertigem dos acontecimentos que o faz acessar esse ser esquecido, tornado estrangeiro e lacrado dentro de sua carapaça de homem branco e vencedor. Por isso, também aqui registro outra revelação que os primeiros encontros em sala de trabalho nos fizeram perceber: nossa peça articula de modo simultâneo e sobreposto distintos espaços e tempos (lemos um pouco sobre Kairós). Se em vida estamos presos ao tempo cronológico, causal e linear, em cena, ao contrário, podemos saltar tempos e espaços, fazendo aparecer num mesmo instante o antes e o depois, o agora aqui e noutro lugar.

Uma confissão. Uma experiência limite, transformadora, um voltar a si mesmo e um nunca mais se esquecer. Uma lembrança de que sou quem tentam me fazer não ser. Um manifesto de si, mas, sobretudo, enquanto personagem, um convite ao público - e a nós mesmos - para que tenhamos força e agressividade para ser quem somos, independente das morais e valores que nos empalidecem e desvitalizam.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

E, com tranquilidade, ele vai chegando


Mudança de Direção

De fato, na última semana, muito aconteceu nesse processo de criação. Foram quatro encontros em uma semana, eu levei um capítulo escrito (em forma de romance, mesmo) e começamos a fazer pequenas composições de cena, além - é claro - de muita conversa. Tivemos reunião com o patrocinador, firmando uma série de definições sobre o projeto, as contrapartidas e a estreia.

E algo mais, essencialmente, uma mudança de direção. Compreendi que eu deveria convidar o outro integrante da companhia, até então creditado como diretor assistente, para dirigir YELLOW BASTARD junto a mim. Assim, a partir de agora a direção do espetáculo é de Andrêas Gatto e Diogo Liberano porque é assim que estamos criando: juntos ao Márcio, por meio de falas simultâneas e uma escuta cada vez mais afiada.

No último fim de semana, fizemos uma breve e longa reunião aqui em casa para entender os caminhos do processo, para afirmarmos - junto ao Márcio - escolhas um pouco mais precisas e que possam tornar o processo - para o ator - menos especulativo e um pouco mais estruturado. Compreendemos assim que temos alguns procedimentos a serem repetidos (com variações, obviamente) no decorrer dos próximos encontros:

- preparação (cuidado do corpo)
- leitura e análise do texto
- composição
- improvisação
- psicofísica e atmosfera

Em breve, gastarei um tempo no blog resumindo os encontros ainda não postados. Mas fato é que a descoberta do romance mudou tudo. Ao escrever essa narrativa (longa) num formato (tradicionalmente reconhecido como) romance, eu me livro de ter que escrever para a cena e para o ator e dou a todos nós um universo muito mais complexo e intrigante do que somente indicações de cena. É uma intensificação, sem dúvida, do que venho pesquisando como dramaturgo.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Da situação como concentração de movimento

Sigo eu nessa jornada teórica-intempestiva, profana mesmo, usando tudo ao meu redor para seguir abrindo caminhos. É assim como faço, é como gesto de fazer, me alimenta a potência, me faz sorrir, amanheci sorrindo. Faz tempo que penso na palavra situação como uma grande catalisadora da criação teatral (dramatúrgica e cênica). O que seria, nesse maremoto de possibilidades, isso que chamo de situação?

Recorro ao dicionário e descubro que a palavra "situação", substantivo feminino, possui várias acepções possíveis. Cito algumas: 1) ato ou efeito de estar situado; 2) lugar, localidade; 3) condição, caso; e 4) o estado dos negócios, combinação de circunstâncias. Pois bem: situação seria algo como estar situado numa localidade (ou condição) específica. No caso de uma peça de teatro, provavelmente (assim estamos acostumados), tal especificidade diz respeito a uma conjuntura especial, única, aquela que acontece ali no aqui-agora da performance teatral.

Por que tenho pensando tanto em situação como esse catalisador teatral? Ora, parece-me óbvio, mas, desde Sinfonia Sonho (2011), descubro a situação como um modo de revelar o drama. É como se ele estivesse aprisionado nas ideias e imagens, sinopses e conflitos da criação, mas precisasse de um modo específico para vir a ser. Então, quando eu coloco o drama em uma situação específica - e, por isso, especial e intencional (artificial e artística) - ele me revela aquilo que eu nem sabia, mas que mora dentro da coisa toda, que - de um jeito ou de outro - anima aqueles seres a aparecer.

Vou à morfologia das expressões que compõem a palavra "situação". São duas: "situar" + "ção". "Situar" é um verbo que diz respeito a pôr em determinado sítio, colocar. Como sinônimo, podemos dizer que situar é também enxergar-se. Já "ção" - enquanto um sufixo - é uma terminação usada na formação de substantivos derivados de verbos que trazem em si a ideia de ação, de processo. Esse sufixo invoca à necessidade de um agente causador dessa ação.

Muita coisa. Tento inventar algo a partir disso: situar é enxergar a si mesmo num sítio onde se foi colocado ou no qual determinado alguém se colocou. No entanto, este sítio - esta situação - constitui-se como um movimento, um acontecimento: algo em processo. Assim, a situação - tal como a vejo agora - denota uma transformação, um percurso. Lembro-me de Sinfonia (e naquela época isso me era tão intuitivo): na primeira cena, uma família está num carro, numa viagem de mudança para outra cidade. Estão cansados, quase concluindo uma longa viagem: as crianças estão já amuadas com o longo percurso, querem chegar e há as expectativas para o dia seguinte, com a casa nova etc.. Ou seja: há um presente e um futuro premente. Na mesma situação, há o antes, o instante daquele agora e uma antecipação ligeira do que virá. A situação é o movimento concentrado.



A situação é a concentração do movimento. Por isso, quando penso em situações para Yellow, penso em contextos específicos que não podem ser quaisquer: precisam, antes, dizer minimamente sobre um antes, assegurar um instante presente e premeditar aquilo que virá. Por isso, pergunto, em quais situações colocar Yellow? Talvez em situações cujos títulos sejam terminados em "ção". Risos. Atualizo, a seguir, os nove momentos, as nove situações que tenho listadas para a composição do percurso dessa dramaturgia:
CRUCIFICAÇÃO - Yellow gera sua cria, em Marte, e é crucificado. 
DESCONTINUAÇÃO - Yellow contamina Marte com o amor terráqueo. 
INFERTILIZAÇÃO - Yellow assimila a lógica reprodutiva de Marte. 
INSIGNIFICAÇÃO - Yellow é bem sucedido em mais uma defesa. 
INTERVENÇÃO - Yellow em mais uma sessão de terapia. 
MEMORAÇÃO - Yellow enterra a sua mãe terráquea. 
OBSERVAÇÃO - Yellow abre os olhos e está preso numa cela. 
ORIGINAÇÃO - Yellow se reencontra com o ser que o originou. 
TONAÇÃO - Yellow retorna a Marte, após quase cinquenta anos.

No entanto, algumas palavras não me soam tão belas, não tão rítmicas, não tão sedutoras assim. Refaço as apostas, mantendo os propósitos acima descritos;
CRUCIFICAÇÃO - Martírio 
DESCONTINUAÇÃO - Amor 
INFERTILIZAÇÃO - Estado 
INSIGNIFICAÇÃO - Ignorância 
INTERVENÇÃO - Terapia 
MEMORAÇÃO - Mãe 
OBSERVAÇÃO - Cela 
ORIGINAÇÃO - Origem 
TONAÇÃO - Regresso

Interessante experimentação a situação do amor, o amor enquanto situação. A situação da cela, a cela enquanto uma situação. A situação do estado, o estado enquanto uma situação. A situação da ignorância, da mãe, do martírio, a situação da origem e do regresso, a situação da terapia. Assim, eis as situações - em ordem alfabética - que a dramaturgia pretende desdobrar:
AMOR
CELA
ESTADO
IGNORÂNCIA
MÃE
MARTÍRIO
ORIGEM
REGRESSO
TERAPIA

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Yellow é um desculpante?



Os desculpantes

[...]
Se sentir ou não se sentir culpado. Acho que tudo depende disso. A vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas como essa luta acontece numa sociedade mais ou menos civilizada? As pessoas não podem se atirar umas sobre as outras sempre que se encontram. Em vez disso, tentam jogar no outro o constrangimento da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá aquele que reconhecer sua culpa. Você vai pela rua, mergulhado em pensamentos. Em sua direção vem uma moça, como se estivesse sozinha no mundo, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita, indo direto em frente. Vocês se esbarram. Eis o momento da verdade. Quem vai insultar o outro, e quem vai se desculpar? É uma situação-modelo: na realidade, cada um dos dois é ao mesmo tempo o que sofreu o esbarrão e o que esbarrou. E, no entanto, há os que se consideram, imediatamente, espontaneamente, os que esbarraram, portanto culpados. E há os outros, que se vêem sempre, imediatamente, espontaneamente, como os que sofreram o esbarrão, portanto no seu direito de acusar o outro e de fazer com que este seja punido. Você, numa situação como essa, você se desculparia ou acusaria?
[...]

A festa da insignificância – Milan Kundera

Encontro #4

Em nosso quarto encontro (terça, 15 de janeiro de 2019, de 09h/13h no CCBB), estivemos apenas eu e Márcio.  Levei uma nova versão sobre o que é, quem é YELLOW BASTARD. Lemos e conversamos muito. Por se tratar de uma criação em criação, posso afirmar que tudo ainda está em aberto e que, pouco a pouco, encontramos os sentidos que se tornam mais sensíveis a nós e, por extensão - imaginamos -, ao nosso espectador. Destaco alguns aspectos determinantes que foram conversados:

- a questão das idades em Marte, quando um ser gera outro, quantos anos geralmente dura uma existência marciana etc.;

- percorremos a vida de Yellow desde sua infância: foi amamentado (e isso contribuiu para a coloração de sua pele ir ficando branca no correr dos anos); não viu muitos espelhos (logo, não tomou compreensão de si e muito menos investiu demasiada importância na noção de indivíduo); suas festas de aniversário, feitas pela mãe terráquea, sempre foram muito amarelas, dando a ele alguma sensação de pertencimento ao mundo; na adolescência, respondia aos bullyings com leveza e ingenuidade e, como que por distração, sobreviveu a todos eles; adulto, tornou-se advogado de defesa, especializado em causas relacionadas aos direitos humanos; após sua formação, foi compreendendo ser preciso atuar num drama social, cimentando um pouco a sua bondade para dar lugar a um homem bem-sucedido e capaz de sobreviver na selva da cidade;

- o aspecto crístico (de Cristo) é o seguinte: sua bondade, nutrida pela mãe terráquea, sempre foi rebatida (fosse nos bullyings vividos na adolescência ou nas dificuldades da vida adulta e profissional), porém, Yellow sempre respondeu a tudo de modo a se desculpar, nunca sofrendo os problemas, mas sempre tentando compreende-los a fim de melhorar a si mesmo e a situação. Porém, em analogia ao percurso de Jesus, podemos pensar: sendo esse ser libertário, confiante e praticante do amor independente das dificuldades, Yellow seria prontamente crucificado, seria morto. A questão então é: ele, progressivamente, vai cimentando essa bondade em si mesmo e se tornando um homem duro, não propriamente violento ou rude, mas com um brilho mais apagado. Quando tudo é revirado e ele volta a Marte, aí sim este homem escondido dentre dele, sua versão crística, finalmente precisa aparecer, pois em Marte a violência é muito maior e o amor, por extensão, também precisa ser muito mais destemido; para concluir seu percurso, poderíamos dizer que o Yellow Bastard que se faz surgir na crise de meia idade desse "homem" nada mais é do que o retorno à própria infância;

- três questões fazem o amarelo de sua pele (re)aparecer: 1) a morte da mãe terráquea; 2) a revelação dita por ela, antes de morrer, de que ele não veio dela, de que ele não veio branco; e 3) a conexão abrupta e inexplicável com algo muito distante e intenso (o ser que o gerou e que está, a sua espera, em Marte). Pode-se dizer que a pele amarelar nada mais é do que um intenso processo de alta, altíssima exposição;

- três lutas se abrem a partir dessa virada em sua vida, em sua existência, quase ao completar cinquenta anos: 1) a luta contra a situação de ser alguém que subitamente se tornou amarelo; 2) a luta para compreender, para entender toda essa situação; e 3) a luta com essa espécie de chamado que há fora de si, um chamado de Marte (ele ainda não compreende);

- sobre Marte ser outro planeta a partir da afirmação terráquea: "se esse é o mundo que temos, eu devo então ter nascido noutro planeta". Em outras palavras: Marte, em nossa criação, é um planeta despótico (tal como a Terra está se tornando) e a Terra, onde há o amor, é uma chave capaz de modificar as dinâmicas em Marte.

Um dia antes desse encontro, enviei para uma amiga advogada (Tatiana Alvim) um áudio, pedindo a ela que me dissesse um pouco sobre a sua vida, sua rotina como advogada. Neste quarto encontro, eu e Márcio ouvimos aos seus áudios e vários aspectos sobre ser advogado nos chamaram a atenção:

- a imposição de uma indumentária aos advogados;
- algumas tarefas extremamente burocráticas como "alimentar o sistema";
- tarefas "interessantes" como pegar uma demanda, estudar a causa, encontrar brechas na lei para a defesa de um cliente, enfim, inventar uma história para realizar a defesa (algo, a propósito, muito presente em qualquer filme com advogados e defesas diversas);
- NESSE PONTO, INVESTINDO NAS ANALOGIAS QUE VENHO PERSEGUINDO, DESTACO >>> o advogado é também um contador de histórias <<< ELE ENTENDE A SITUAÇÃO, MONTA NO PAPEL A SUA NARRATIVA E FAZ A SUA DEFESA, A SUA PERFORMANCE;
- também sofre o drama da consciência, tendo que ser (defender) aquilo que você não é (não acredita);
- a boa sensação de defender algo que o seu senso de justiça defenderia;
- e as relações de trabalho, os encontros e amizades que acabam sendo criados (minha amiga Tat descreve um gesto feito por uma funcionária com a qual ela não se dava muito bem, um gesto de profundo cuidado e bondade).

Por fim, compartilho a seguir algumas imagens de uma história em quadrinhos que o Márcio levou como referência, ASTERIOS POLYP, de David Mazzucchelli:




terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Encontro #3


O que sabemos sobre YB –

O encontro de hoje, terceiro encontro desde que começamos 2019, foi extremamente revelador. Nele estavam presentes eu (diretor e dramaturgo), Andrêas Gatto (diretor assistente) e Márcio Machado (ator). O objetivo desse encontro, a partir de um planejamento feito por mim, foi imaginar a narrativa desta criação em dois momentos (como se ela acontecesse em 02 atos): um primeiro momento no planeta Terra e o momento seguinte em Marte.
Levei impressa uma breve “cena” em que o personagem Yellow Bastard, aprisionado numa cela no planeta Terra, faz um pedido ao vigilante que o vigia. A seguir, transcrevo a cena já adulterada pelo jogo que fizemos (o jogo do “desfigurar” que consistia em, sobre o papel impresso, riscar o “excesso” de palavras do texto, desorientando a trama escrita e abrindo outras possibilidades):


YELLOW se aproxima da grade frontal da cela onde está preso. Posiciona, em frente à ela, uma cadeira. Senta-se, mira o longo corredor cujo fim não se vê e fala ao Sentinela que mora ao fim desse corredor.

Sugou
Chupou
Comeu
Mastigou as melhores histórias que tinha
Estou seco agora
É justo
Você precisava ouvir
Outras histórias
Não te deixam
Livro ou televisor
Celular computador
Nada disso aqui te deixam
Te sinto
Por isso pediu
Que contasse histórias
Para viajar
Sem sair do lugar
Mas seco agora
É minha vez de pedir
Alguma coisa
Não suas histórias
Mas a sua
Total confiança

Aproximando o rosto da grade.

Caro Sentinela,
Posso?
Pelos sorrisos abertos
Pelas lágrimas
Nos seus olhos empoçadas
Uma retribuição
Por tudo isso
Apenas um
Este hoje
Pedido
Que conte
Minha história no depois daqui
Você me pergunta
Partir para onde?
Quando, Amarelo?
E como você partiria?
Trancado nessa cela
Prisioneiro
Do Estado
Ora, ora, meu caro
O Estado
É uma invenção do Estado
Posso partir
Sabes disso
Poderia sumir
Na hora que bem quisesse
Do jeito que inventasse
Em brevíssimo
Partirei, por isso
A urgência do meu pedido
Posso?

O Sentinela assente. YELLOW o percebe e se ergue.

Você me aceita
Aprendeu a me tolerar
Assente o meu pedido
Sem falar
E da minha língua
Para a sua
Meu pedido passa
Sobre a sua língua
Ele agora pousa
E pensa sua cabeça
Pesada, ela coça
Se vou mesmo embora
Você se pergunta
Meu caro, Sentinela
Vou-me mesmo
Já estou quase lá fora

As grades da cela atravessam o corpo de YELLOW, que chega ao corredor intacto e liberto.

Hora exata esta
Estou nas coisas todas
Sou todas elas
Mais nelas do que comigo mesmo
Estou do seu lado
Não se assuste, medo não
Iria de qualquer jeito
Poderia e posso
Nunca estive só
Lá e antes
Dentro e muito no fora
Estive nos cantos todos
Você nem viu
Mas lá estava
Lá estou agora
Por isso
Um pedido
Que conte
Para aquelas
Aqueles que restarem
Depois de mim
Conte-os
Conte o que descobri
O que comigo se deu
Quando estive junto
E colado
E sugado
Comido, chupado e mastigado
Conte
Lhe peço
Por tudo já te contado
Conte apenas Isso
Exatamente isso
Sobre isso
Que vocês teimam em chamar
De amor.

A tela pela qual se vigiam os prisioneiros em suas celas não consegue encontrar YELLOW. O Sentinela aperta um botão de emergência e o som da sirene ecoa sozinho pelo espaço da prisão. O Sentinela cantarola qualquer coisa, mas já não importa mais.

Acima, compartilhei a desfiguração feita por mim. Porém, as outras desfigurações (de Andrêas e Márcio) nos brindaram com outras descobertas. Eis um bom jogo para fazermos outras vezes, desfigurar o texto para ir secando as palavras até chegar ao mais essencial delas). Após tal jogo, pendurei na parede da sala de ensaio duas tiras de papéis (uma com a marca “Terra” e outra com “Marte). Nesses papéis, fomos escrevendo situações que teriam sido vividas por Yellow (em momentos distintos de sua vida), naqueles espaços específicos.
Não descreverei a seguir o que foi escrito nos papéis (tenho esse material aqui comigo), mas sim a conversa que brotou entre eu e os meninos. Por onde começar? (Foi tanta coisa!). Talvez eu pudesse escrever um breve texto (não explicando, mas) afirmando a coisa toda:

YELLOW BASTARD apresenta a história de um marciano que não sabe que é marciano. Não ainda. Ele chegou no planeta Terra em uma madrugada quente de novembro de 1974. Logo ao chegar, aterrissou no colo de uma mulher com seus quase trinta anos. Ela estava jogada sobre o terreno do lado de fora de sua casa, logo após ter sido espancada por seu namorado e ter perdido o seu filho, ainda em gestação. No momento em que Yellow é enviado à Terra, essa mulher acabou de enterrar o feto dessa criança que não pôde nascer. Quando ela acorda, sobre a terra do quintal, tem em seus braços um bicho estranho e amarelo, miúdo e sonoro. Talvez por muita dor (ou sabe-se lá por qual motivo), ela recebe e aceita essa estranha criatura e faz dela o seu primeiro e único filho, criando-o desde então. Ela amamenta a criatura que, num percurso de quase cinquenta anos de vida na Terra, vai ficando branca, com feições ainda mais humanas. Yellow aprende a linguagem dos homens, estuda em escolas, presta o vestibular, se muda para uma cidade maior, faz amigos e inimigos, sofre bullying quando e, ainda assim, se torna um brilhante advogado. Em 2018, porém, sua mãe terráquea é atropelada no centro de uma grande cidade[1]. No hospital, em seu leito de morte, “seu filho” a tenta socorrer, mas a gravidade da saúde dela o coloca numa situação extremamente instável: ele entra em contato com sensações ainda não vividas, especialmente a dor dilacerante que é perder alguém que se ama. É ali, naquele hospital, onde o corpo do marciano – que não sabia ser marciano – reage de modo inquestionável: irritado por ser impedido de tirar sua mãe do hospital (para leva-la em direção à casa onde ele julga ter nascido), subitamente sua pele começa a amarelar, como numa reação química, ele bruscamente fica amarelo, para desespero de sua “mãe” e terror das enfermeiras e médicos de plantão. Uma noite em uma vida inteira e agora ele está amarelo, completamente amarelo. Ele arranca a mãe do hospital e a leva até sua antiga casa, enterrando-a no mesmo solo onde, outrora, ele enterrou seu filho biológico (que sequer chegou a nascer). Prestes a morrer, a mãe terráquea tenta se desculpar por ter escondido de seu “filho” sua real origem (que nem mesmo ela soube dizer qual era). Após ser enterrada por Yellow, num corte lancinante e doloroso, ainda no terreno da casa de sua infância, jogado sobre a terra seca e escura, ele é atravessado por um grito, um descontentamento profundo (que ele ainda não sabe, mas vem de sua “mãe original”, o ser que o gerou, que ainda está em Marte). É que em Marte não há isso de pai ou mãe, nem de homem ou mulher. Em Marte, só o que há são seres – marcianos – que obrigatoriamente vão gerar outro ser, apenas um outro ser. No momento em que um novo marciano é gerado, a morte do ser que o gerou começa a sua contagem regressiva. No caso da “mãe” de Yellow, o que aconteceu – pela primeira vez – foi justo um crime, uma traição ou trapaça. Por não querer se ver longe de seu filho, por não querer simplesmente abandoná-lo ao destino, ela o teve, ela o fez nascer e o escondeu junto a si. No entanto, quando esse crime é descoberto, como punição, a mãe de Yellow continua viva, porém, seu filho recém-nascido – o próprio Yellow – é enviado para o planeta Terra, onde deverá permanecer ignorante e em penitência até o momento em que estiver prestes a completar cerca de cinquenta anos (mais ou menos a idade em que os marcianos geram suas crias). No dia em que enterra sua mãe terráquea, talvez pela primeira vez, Yellow gasta um tempo olhando em direção ao céu. O grito de sua mãe biológica talvez seja escutado por ele. Sua pele já está amarela, a desconfiança em relação ao mundo e a tudo é imensa; mais que tudo, ele sente. Não é apenas a pele, não apenas o corpo que, subitamente, despertou. Há uma dor de antes, uma indagação persistente que ele não sabe dar conta, posto nunca tenha estado junto a ela, ao menos não de maneira tão evidente. Ele mira ao céu e se pergunta como o impossível, subitamente, se torna possível. Durante quase cinquenta anos, na Terra, ele viveu uma vida considerada normal, se tornou um grande advogado. Atualmente, trabalhava num grande escritório de uma grande empresa. Tudo muito clichê, tudo muito grande, tudo muito branco. Às sextas, ia ao happy hour com os amigos do trabalho e, sentia, que progressivamente estava começando a se apaixonar por alguém. Yellow se tornou um homem modelo do sucesso, branco, advogado, bonito inclusive. Essa foi a vida que sua mãe terráquea conseguiu que ele tivesse. Uma vida bela, sem dúvida, mas escondendo – sob tanta maquiagem – quem ele realmente era e quem, inevitavelmente, um dia ele descobriria ser. Tudo isso acontece assim, de súbito, no dia em que ela morre: esse ser que foi escondido dentro dele próprio, finalmente, aparece. Aos poucos, primeiro, aos poucos, mas no correr dos dias, o amarelo toma a pele por completo, o corpo parece ser revirado e uma intensa e imensa disponibilidade ocupa cada pedaço da atenção daquele homem já não tão homem assim. Ele se pergunta, certa vez, mirando o rosto num espelho de banheiro: quem está trancado aí dentro, hein? Quem está preso dentro de mim? Ele não sabe responder, mas sente que a pergunta é o mais perto que ele pode chegar da vida. E é sentindo tudo, de novo e renovadamente, que ele vai percebendo ser mais do que sempre soube. Uma imensa disponibilidade o faz sentir as coisas ao redor, próximas a ele ou não. Uma escuta muito calibrada o faz ouvir os passos dados por baratas em ralos da grande cidade. As estrelas, o sol, o céu; tudo conversa com ele e ele, com tudo, também conversa. Como é possível, ele se pergunta, de um dia a outro perceber que dentro de você pulsa outra coisa que não aquilo que você julgava ser a sua vida inteira? Eis o dilema. Dentro dele um amor muito grande, transbordante, um desejo radiante de contágio, de aproximação, de abraçar o mundo inteiro e contar ao mundo a sua confissão. Para além da dor de perder sua mãe – e, talvez, justamente por conta dessa dor – ele compreende ser feito de algo mais, descobre ser feito de amor; uma aderência às coisas e aos seres do mundo. Um amor amoral, imenso, amor que ultrapassa o que pode e o que não pode. Ele descobre-se amante da vida, de tudo ao redor, num movimento intenso de querer a tudo, a todos, de só querer amar, sem motivo capaz de explicar tanto desejo. Era isso o que esteve preso esse tempo todo dentro de mim? É isso o que essa vida humana faz morrer, prende, enclausura? E é nesse momento, em algum ano entre 2024 ou 2025, que Yellow é preso numa penitenciária de segurança máxima. Ele é considerado estranho, para além da pele amarela, porque é amoroso ao extremo. Por isso é aprisionado numa penitenciária nova aos padrões da época. Já não importam os recursos tentados, de nada serve ter-se tornado advogado: ele está preso e ali ficará. A não ser que. A não ser que perceba, honestamente, que é chegada a hora de partir, a hora de concluir o seu destino. É hora de voltar a Marte. E ele volta. É madrugada na Terra, ele ultrapassa as barras de ferro de sua cela. Ele caminha até um espaço aberto, já fora da prisão. Ele não sabe, mas está descobrindo. Ele não é daqui, dizem as lágrimas que escorrem por seu rosto forte e franzino. Ele vai sumindo, no ar, vai virando ar mesmo, como num filme de ficção científica, ele é tudo aquilo que a ele se aproxima. E lá em cima, na imensa distância, ele chega em Marte, é um momento único, amplamente esperado. Ele de frente a uma grande e imensa multidão de marcianos, seres como ele, amarelos como ele. Ele então reconhece sua mãe. Ela, enfim, morrerá. Ele também, agora há de gerar um filho e morrer. Mas não. Ele tenta segurar o tempo. Ele não quer morrer, não porque se oponha ao governo marciano, mas porque descobriu algo na Terra que pode valer uma vida inteira. Ele tenta se explicar, os marcianos não compreendem. Os marcianos temem a raça humana, raça da guerra, do poder, da corrupção. Ele tenta novamente. É só o amor, ele diz a si mesmo, remexendo-se para ser entendido, ele afirma a si mesmo: o amor é capaz de dar um jeito nisso tudo, em tudo isso. A despeito de tudo, é só o amor que faz algum sentido. É só o amor.


E então, nós três – no encontro #3 – nos perguntamos sobre a imagem que queremos colocar diante do nosso espectador. Eis um homem branco, um advogado, um homem atarefado, correndo o dia-a-dia, com problemas comuns (sua mãe no hospital, recém-atropelada). Um homem que, num dia qualquer (ou, não tão qualquer assim), descobre trazer dentro de si – trancafiada – outra existência, outra potência existencial. Um marciano que foi tornado homem na tentativa de reter, controlar e vigiar, na tentativa de colonizar sua estranheza que, por extensão, é também sua força, sua beleza.

É como se perguntássemos aos nossos espectadores: quem é o estrangeiro que vive dentro de cada um? Quem é o estranho, o desfamiliar, a aberração, o abjeto, o outro que você mata por que não tem coragem de assumir que é você próprio? Perguntas para os próximo encontros.



[1] Esse trecho da história de Yellow foi escrito no roteiro cinematográfico “BASTARD” de Diogo Liberano.