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quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Uma impressão sobre o nosso YELLOW


É possível se perguntar "quem sou eu?" sem se perguntar "de onde eu vim?"? O homem amarelo de Yellow Bastard desperta para a consciência de si justamente ao tomar conhecimento da sua origem. É ao descobrir qual o ventre que o carregou e qual a terra em que nasceu que sua condição de extraterrestre se revela. O interessante é que esta revelação existencial é também revelação da dimensão política de sua existência. Ao descobrir a história do ventre que o carregou e a história da terra em que nasceu, o personagem dá-se conta da relação entre seu nascimento e as assombrosas circunstâncias que o engendraram. O que vemos em cena, a partir daí, é a vertigem de sua tomada de consciência.

Foto de Thaís Grechi


É bonito pensarmos em um estado de consciência vertiginosa. A gente associa consciência à ordem, coerência, clareza, controle, e estar em vertigem seria a experiência oposta: caos, paradoxo, indefinição, perda do eixo. A consciência vertiginosa seria a lucidez no desequilíbrio, a clareza na convulsão do caos, a atenção integral do corpo diante da febre de uma verdade. O extraterrestre de Yellow Bastard é tomado por este estado diante do choque da revelação de sua história, e é na potência deste estado que cria sua resposta ao pavor e ao medo. Opta pela ação ao invés da paralisação. É bonito pensarmos que em estado de consciência vertiginosa somos capazes de gerar respostas inventivas à barbárie.

Na cena em que o personagem escuta a história da sua origem, a qualidade de presença do ator Márcio Machado também tem muito deste estado. Em contraponto às minuciosas e precisas partituras físicas da primeira parte da peça, que correspondem, dramaturgicamente, ao cotidiano automatizado do personagem, o que vemos agora é um corpo vulnerável, um corpo resplandecente porque vulnerável. O rigor físico se mantém, mas aqui o ator, ao invés de controlar seus movimentos, deixa-se afetar por eles. Ao invés de dançar, é dançado. Me parece que a partir desta cena Márcio aciona uma qualidade de presença mais receptiva do que ativa, mais permeável e porosa à imprevisibilidade de ser e de ser cenicamente. Sua respiração se evidencia e torna-se ação. Fiquei com a impressão de que estava assistindo a um ator não sabendo, no melhor sentido do termo. E habitar o não saber é tão corajoso. A gente tem medo. A gente tem medo do nosso próprio fulgor.

Por Tomás Braune

domingo, 31 de março de 2019

Até o instante em que estamos

Por vezes esse blog me volta como um diário, um lugar onde escrevo sobre o caminho percorrido e não necessariamente sobre a criação da peça em si.

Fato é que neste mês de março eu quase nada escrevi. O motivo é que estou terminando de escrever o romance e tem sido um desafio tremendo. A última postagem fiz antes de ir para Vassouras, onde passei o carnaval a escrever.

Hoje, quase antes do início de abril, ainda tenho muito a fazer. Nessa primeira quinzena de abril o meu foco é finalizar o romance e as cenas finais. São mais cinco capítulos-cenas e nunca antes senti tanta dificuldade. É óbvio. Aquela coisa do desfecho, de reunir - de alguma maneira - tudo o que foi
apresentado até ali. E, sobretudo, a presença-aparição-surgimento de um novo cenário: Marte.

Por vezes me pego pensando em verossimilhança, mas não como uma exigência que me obrigaria a tornar "real" toda a dimensão "poética" (ou fantástica) dessa criação. Há várias verossimilhanças e penso que a mais importante é a interna ou interior, a própria diegese dessa trama.

Adiante, Liberano. Você já chegou em Marte agora é destruir tudo: espalhar amor!

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Encontro #4

Em nosso quarto encontro (terça, 15 de janeiro de 2019, de 09h/13h no CCBB), estivemos apenas eu e Márcio.  Levei uma nova versão sobre o que é, quem é YELLOW BASTARD. Lemos e conversamos muito. Por se tratar de uma criação em criação, posso afirmar que tudo ainda está em aberto e que, pouco a pouco, encontramos os sentidos que se tornam mais sensíveis a nós e, por extensão - imaginamos -, ao nosso espectador. Destaco alguns aspectos determinantes que foram conversados:

- a questão das idades em Marte, quando um ser gera outro, quantos anos geralmente dura uma existência marciana etc.;

- percorremos a vida de Yellow desde sua infância: foi amamentado (e isso contribuiu para a coloração de sua pele ir ficando branca no correr dos anos); não viu muitos espelhos (logo, não tomou compreensão de si e muito menos investiu demasiada importância na noção de indivíduo); suas festas de aniversário, feitas pela mãe terráquea, sempre foram muito amarelas, dando a ele alguma sensação de pertencimento ao mundo; na adolescência, respondia aos bullyings com leveza e ingenuidade e, como que por distração, sobreviveu a todos eles; adulto, tornou-se advogado de defesa, especializado em causas relacionadas aos direitos humanos; após sua formação, foi compreendendo ser preciso atuar num drama social, cimentando um pouco a sua bondade para dar lugar a um homem bem-sucedido e capaz de sobreviver na selva da cidade;

- o aspecto crístico (de Cristo) é o seguinte: sua bondade, nutrida pela mãe terráquea, sempre foi rebatida (fosse nos bullyings vividos na adolescência ou nas dificuldades da vida adulta e profissional), porém, Yellow sempre respondeu a tudo de modo a se desculpar, nunca sofrendo os problemas, mas sempre tentando compreende-los a fim de melhorar a si mesmo e a situação. Porém, em analogia ao percurso de Jesus, podemos pensar: sendo esse ser libertário, confiante e praticante do amor independente das dificuldades, Yellow seria prontamente crucificado, seria morto. A questão então é: ele, progressivamente, vai cimentando essa bondade em si mesmo e se tornando um homem duro, não propriamente violento ou rude, mas com um brilho mais apagado. Quando tudo é revirado e ele volta a Marte, aí sim este homem escondido dentre dele, sua versão crística, finalmente precisa aparecer, pois em Marte a violência é muito maior e o amor, por extensão, também precisa ser muito mais destemido; para concluir seu percurso, poderíamos dizer que o Yellow Bastard que se faz surgir na crise de meia idade desse "homem" nada mais é do que o retorno à própria infância;

- três questões fazem o amarelo de sua pele (re)aparecer: 1) a morte da mãe terráquea; 2) a revelação dita por ela, antes de morrer, de que ele não veio dela, de que ele não veio branco; e 3) a conexão abrupta e inexplicável com algo muito distante e intenso (o ser que o gerou e que está, a sua espera, em Marte). Pode-se dizer que a pele amarelar nada mais é do que um intenso processo de alta, altíssima exposição;

- três lutas se abrem a partir dessa virada em sua vida, em sua existência, quase ao completar cinquenta anos: 1) a luta contra a situação de ser alguém que subitamente se tornou amarelo; 2) a luta para compreender, para entender toda essa situação; e 3) a luta com essa espécie de chamado que há fora de si, um chamado de Marte (ele ainda não compreende);

- sobre Marte ser outro planeta a partir da afirmação terráquea: "se esse é o mundo que temos, eu devo então ter nascido noutro planeta". Em outras palavras: Marte, em nossa criação, é um planeta despótico (tal como a Terra está se tornando) e a Terra, onde há o amor, é uma chave capaz de modificar as dinâmicas em Marte.

Um dia antes desse encontro, enviei para uma amiga advogada (Tatiana Alvim) um áudio, pedindo a ela que me dissesse um pouco sobre a sua vida, sua rotina como advogada. Neste quarto encontro, eu e Márcio ouvimos aos seus áudios e vários aspectos sobre ser advogado nos chamaram a atenção:

- a imposição de uma indumentária aos advogados;
- algumas tarefas extremamente burocráticas como "alimentar o sistema";
- tarefas "interessantes" como pegar uma demanda, estudar a causa, encontrar brechas na lei para a defesa de um cliente, enfim, inventar uma história para realizar a defesa (algo, a propósito, muito presente em qualquer filme com advogados e defesas diversas);
- NESSE PONTO, INVESTINDO NAS ANALOGIAS QUE VENHO PERSEGUINDO, DESTACO >>> o advogado é também um contador de histórias <<< ELE ENTENDE A SITUAÇÃO, MONTA NO PAPEL A SUA NARRATIVA E FAZ A SUA DEFESA, A SUA PERFORMANCE;
- também sofre o drama da consciência, tendo que ser (defender) aquilo que você não é (não acredita);
- a boa sensação de defender algo que o seu senso de justiça defenderia;
- e as relações de trabalho, os encontros e amizades que acabam sendo criados (minha amiga Tat descreve um gesto feito por uma funcionária com a qual ela não se dava muito bem, um gesto de profundo cuidado e bondade).

Por fim, compartilho a seguir algumas imagens de uma história em quadrinhos que o Márcio levou como referência, ASTERIOS POLYP, de David Mazzucchelli:




terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Encontro #3


O que sabemos sobre YB –

O encontro de hoje, terceiro encontro desde que começamos 2019, foi extremamente revelador. Nele estavam presentes eu (diretor e dramaturgo), Andrêas Gatto (diretor assistente) e Márcio Machado (ator). O objetivo desse encontro, a partir de um planejamento feito por mim, foi imaginar a narrativa desta criação em dois momentos (como se ela acontecesse em 02 atos): um primeiro momento no planeta Terra e o momento seguinte em Marte.
Levei impressa uma breve “cena” em que o personagem Yellow Bastard, aprisionado numa cela no planeta Terra, faz um pedido ao vigilante que o vigia. A seguir, transcrevo a cena já adulterada pelo jogo que fizemos (o jogo do “desfigurar” que consistia em, sobre o papel impresso, riscar o “excesso” de palavras do texto, desorientando a trama escrita e abrindo outras possibilidades):


YELLOW se aproxima da grade frontal da cela onde está preso. Posiciona, em frente à ela, uma cadeira. Senta-se, mira o longo corredor cujo fim não se vê e fala ao Sentinela que mora ao fim desse corredor.

Sugou
Chupou
Comeu
Mastigou as melhores histórias que tinha
Estou seco agora
É justo
Você precisava ouvir
Outras histórias
Não te deixam
Livro ou televisor
Celular computador
Nada disso aqui te deixam
Te sinto
Por isso pediu
Que contasse histórias
Para viajar
Sem sair do lugar
Mas seco agora
É minha vez de pedir
Alguma coisa
Não suas histórias
Mas a sua
Total confiança

Aproximando o rosto da grade.

Caro Sentinela,
Posso?
Pelos sorrisos abertos
Pelas lágrimas
Nos seus olhos empoçadas
Uma retribuição
Por tudo isso
Apenas um
Este hoje
Pedido
Que conte
Minha história no depois daqui
Você me pergunta
Partir para onde?
Quando, Amarelo?
E como você partiria?
Trancado nessa cela
Prisioneiro
Do Estado
Ora, ora, meu caro
O Estado
É uma invenção do Estado
Posso partir
Sabes disso
Poderia sumir
Na hora que bem quisesse
Do jeito que inventasse
Em brevíssimo
Partirei, por isso
A urgência do meu pedido
Posso?

O Sentinela assente. YELLOW o percebe e se ergue.

Você me aceita
Aprendeu a me tolerar
Assente o meu pedido
Sem falar
E da minha língua
Para a sua
Meu pedido passa
Sobre a sua língua
Ele agora pousa
E pensa sua cabeça
Pesada, ela coça
Se vou mesmo embora
Você se pergunta
Meu caro, Sentinela
Vou-me mesmo
Já estou quase lá fora

As grades da cela atravessam o corpo de YELLOW, que chega ao corredor intacto e liberto.

Hora exata esta
Estou nas coisas todas
Sou todas elas
Mais nelas do que comigo mesmo
Estou do seu lado
Não se assuste, medo não
Iria de qualquer jeito
Poderia e posso
Nunca estive só
Lá e antes
Dentro e muito no fora
Estive nos cantos todos
Você nem viu
Mas lá estava
Lá estou agora
Por isso
Um pedido
Que conte
Para aquelas
Aqueles que restarem
Depois de mim
Conte-os
Conte o que descobri
O que comigo se deu
Quando estive junto
E colado
E sugado
Comido, chupado e mastigado
Conte
Lhe peço
Por tudo já te contado
Conte apenas Isso
Exatamente isso
Sobre isso
Que vocês teimam em chamar
De amor.

A tela pela qual se vigiam os prisioneiros em suas celas não consegue encontrar YELLOW. O Sentinela aperta um botão de emergência e o som da sirene ecoa sozinho pelo espaço da prisão. O Sentinela cantarola qualquer coisa, mas já não importa mais.

Acima, compartilhei a desfiguração feita por mim. Porém, as outras desfigurações (de Andrêas e Márcio) nos brindaram com outras descobertas. Eis um bom jogo para fazermos outras vezes, desfigurar o texto para ir secando as palavras até chegar ao mais essencial delas). Após tal jogo, pendurei na parede da sala de ensaio duas tiras de papéis (uma com a marca “Terra” e outra com “Marte). Nesses papéis, fomos escrevendo situações que teriam sido vividas por Yellow (em momentos distintos de sua vida), naqueles espaços específicos.
Não descreverei a seguir o que foi escrito nos papéis (tenho esse material aqui comigo), mas sim a conversa que brotou entre eu e os meninos. Por onde começar? (Foi tanta coisa!). Talvez eu pudesse escrever um breve texto (não explicando, mas) afirmando a coisa toda:

YELLOW BASTARD apresenta a história de um marciano que não sabe que é marciano. Não ainda. Ele chegou no planeta Terra em uma madrugada quente de novembro de 1974. Logo ao chegar, aterrissou no colo de uma mulher com seus quase trinta anos. Ela estava jogada sobre o terreno do lado de fora de sua casa, logo após ter sido espancada por seu namorado e ter perdido o seu filho, ainda em gestação. No momento em que Yellow é enviado à Terra, essa mulher acabou de enterrar o feto dessa criança que não pôde nascer. Quando ela acorda, sobre a terra do quintal, tem em seus braços um bicho estranho e amarelo, miúdo e sonoro. Talvez por muita dor (ou sabe-se lá por qual motivo), ela recebe e aceita essa estranha criatura e faz dela o seu primeiro e único filho, criando-o desde então. Ela amamenta a criatura que, num percurso de quase cinquenta anos de vida na Terra, vai ficando branca, com feições ainda mais humanas. Yellow aprende a linguagem dos homens, estuda em escolas, presta o vestibular, se muda para uma cidade maior, faz amigos e inimigos, sofre bullying quando e, ainda assim, se torna um brilhante advogado. Em 2018, porém, sua mãe terráquea é atropelada no centro de uma grande cidade[1]. No hospital, em seu leito de morte, “seu filho” a tenta socorrer, mas a gravidade da saúde dela o coloca numa situação extremamente instável: ele entra em contato com sensações ainda não vividas, especialmente a dor dilacerante que é perder alguém que se ama. É ali, naquele hospital, onde o corpo do marciano – que não sabia ser marciano – reage de modo inquestionável: irritado por ser impedido de tirar sua mãe do hospital (para leva-la em direção à casa onde ele julga ter nascido), subitamente sua pele começa a amarelar, como numa reação química, ele bruscamente fica amarelo, para desespero de sua “mãe” e terror das enfermeiras e médicos de plantão. Uma noite em uma vida inteira e agora ele está amarelo, completamente amarelo. Ele arranca a mãe do hospital e a leva até sua antiga casa, enterrando-a no mesmo solo onde, outrora, ele enterrou seu filho biológico (que sequer chegou a nascer). Prestes a morrer, a mãe terráquea tenta se desculpar por ter escondido de seu “filho” sua real origem (que nem mesmo ela soube dizer qual era). Após ser enterrada por Yellow, num corte lancinante e doloroso, ainda no terreno da casa de sua infância, jogado sobre a terra seca e escura, ele é atravessado por um grito, um descontentamento profundo (que ele ainda não sabe, mas vem de sua “mãe original”, o ser que o gerou, que ainda está em Marte). É que em Marte não há isso de pai ou mãe, nem de homem ou mulher. Em Marte, só o que há são seres – marcianos – que obrigatoriamente vão gerar outro ser, apenas um outro ser. No momento em que um novo marciano é gerado, a morte do ser que o gerou começa a sua contagem regressiva. No caso da “mãe” de Yellow, o que aconteceu – pela primeira vez – foi justo um crime, uma traição ou trapaça. Por não querer se ver longe de seu filho, por não querer simplesmente abandoná-lo ao destino, ela o teve, ela o fez nascer e o escondeu junto a si. No entanto, quando esse crime é descoberto, como punição, a mãe de Yellow continua viva, porém, seu filho recém-nascido – o próprio Yellow – é enviado para o planeta Terra, onde deverá permanecer ignorante e em penitência até o momento em que estiver prestes a completar cerca de cinquenta anos (mais ou menos a idade em que os marcianos geram suas crias). No dia em que enterra sua mãe terráquea, talvez pela primeira vez, Yellow gasta um tempo olhando em direção ao céu. O grito de sua mãe biológica talvez seja escutado por ele. Sua pele já está amarela, a desconfiança em relação ao mundo e a tudo é imensa; mais que tudo, ele sente. Não é apenas a pele, não apenas o corpo que, subitamente, despertou. Há uma dor de antes, uma indagação persistente que ele não sabe dar conta, posto nunca tenha estado junto a ela, ao menos não de maneira tão evidente. Ele mira ao céu e se pergunta como o impossível, subitamente, se torna possível. Durante quase cinquenta anos, na Terra, ele viveu uma vida considerada normal, se tornou um grande advogado. Atualmente, trabalhava num grande escritório de uma grande empresa. Tudo muito clichê, tudo muito grande, tudo muito branco. Às sextas, ia ao happy hour com os amigos do trabalho e, sentia, que progressivamente estava começando a se apaixonar por alguém. Yellow se tornou um homem modelo do sucesso, branco, advogado, bonito inclusive. Essa foi a vida que sua mãe terráquea conseguiu que ele tivesse. Uma vida bela, sem dúvida, mas escondendo – sob tanta maquiagem – quem ele realmente era e quem, inevitavelmente, um dia ele descobriria ser. Tudo isso acontece assim, de súbito, no dia em que ela morre: esse ser que foi escondido dentro dele próprio, finalmente, aparece. Aos poucos, primeiro, aos poucos, mas no correr dos dias, o amarelo toma a pele por completo, o corpo parece ser revirado e uma intensa e imensa disponibilidade ocupa cada pedaço da atenção daquele homem já não tão homem assim. Ele se pergunta, certa vez, mirando o rosto num espelho de banheiro: quem está trancado aí dentro, hein? Quem está preso dentro de mim? Ele não sabe responder, mas sente que a pergunta é o mais perto que ele pode chegar da vida. E é sentindo tudo, de novo e renovadamente, que ele vai percebendo ser mais do que sempre soube. Uma imensa disponibilidade o faz sentir as coisas ao redor, próximas a ele ou não. Uma escuta muito calibrada o faz ouvir os passos dados por baratas em ralos da grande cidade. As estrelas, o sol, o céu; tudo conversa com ele e ele, com tudo, também conversa. Como é possível, ele se pergunta, de um dia a outro perceber que dentro de você pulsa outra coisa que não aquilo que você julgava ser a sua vida inteira? Eis o dilema. Dentro dele um amor muito grande, transbordante, um desejo radiante de contágio, de aproximação, de abraçar o mundo inteiro e contar ao mundo a sua confissão. Para além da dor de perder sua mãe – e, talvez, justamente por conta dessa dor – ele compreende ser feito de algo mais, descobre ser feito de amor; uma aderência às coisas e aos seres do mundo. Um amor amoral, imenso, amor que ultrapassa o que pode e o que não pode. Ele descobre-se amante da vida, de tudo ao redor, num movimento intenso de querer a tudo, a todos, de só querer amar, sem motivo capaz de explicar tanto desejo. Era isso o que esteve preso esse tempo todo dentro de mim? É isso o que essa vida humana faz morrer, prende, enclausura? E é nesse momento, em algum ano entre 2024 ou 2025, que Yellow é preso numa penitenciária de segurança máxima. Ele é considerado estranho, para além da pele amarela, porque é amoroso ao extremo. Por isso é aprisionado numa penitenciária nova aos padrões da época. Já não importam os recursos tentados, de nada serve ter-se tornado advogado: ele está preso e ali ficará. A não ser que. A não ser que perceba, honestamente, que é chegada a hora de partir, a hora de concluir o seu destino. É hora de voltar a Marte. E ele volta. É madrugada na Terra, ele ultrapassa as barras de ferro de sua cela. Ele caminha até um espaço aberto, já fora da prisão. Ele não sabe, mas está descobrindo. Ele não é daqui, dizem as lágrimas que escorrem por seu rosto forte e franzino. Ele vai sumindo, no ar, vai virando ar mesmo, como num filme de ficção científica, ele é tudo aquilo que a ele se aproxima. E lá em cima, na imensa distância, ele chega em Marte, é um momento único, amplamente esperado. Ele de frente a uma grande e imensa multidão de marcianos, seres como ele, amarelos como ele. Ele então reconhece sua mãe. Ela, enfim, morrerá. Ele também, agora há de gerar um filho e morrer. Mas não. Ele tenta segurar o tempo. Ele não quer morrer, não porque se oponha ao governo marciano, mas porque descobriu algo na Terra que pode valer uma vida inteira. Ele tenta se explicar, os marcianos não compreendem. Os marcianos temem a raça humana, raça da guerra, do poder, da corrupção. Ele tenta novamente. É só o amor, ele diz a si mesmo, remexendo-se para ser entendido, ele afirma a si mesmo: o amor é capaz de dar um jeito nisso tudo, em tudo isso. A despeito de tudo, é só o amor que faz algum sentido. É só o amor.


E então, nós três – no encontro #3 – nos perguntamos sobre a imagem que queremos colocar diante do nosso espectador. Eis um homem branco, um advogado, um homem atarefado, correndo o dia-a-dia, com problemas comuns (sua mãe no hospital, recém-atropelada). Um homem que, num dia qualquer (ou, não tão qualquer assim), descobre trazer dentro de si – trancafiada – outra existência, outra potência existencial. Um marciano que foi tornado homem na tentativa de reter, controlar e vigiar, na tentativa de colonizar sua estranheza que, por extensão, é também sua força, sua beleza.

É como se perguntássemos aos nossos espectadores: quem é o estrangeiro que vive dentro de cada um? Quem é o estranho, o desfamiliar, a aberração, o abjeto, o outro que você mata por que não tem coragem de assumir que é você próprio? Perguntas para os próximo encontros.



[1] Esse trecho da história de Yellow foi escrito no roteiro cinematográfico “BASTARD” de Diogo Liberano.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Encontros #1 e #2

Nossos primeiros encontros em sala de ensaio aconteceram na quinta e na sexta-feira, dias 10 e 11 de janeiro de 2019, de 09h às 13h, na Sala de Ensaios do CCBB Rio de Janeiro. No primeiro, estiveram eu, Márcio Machado, Clarissa Menezes, Andrêas Gatto e Laura Nielsen. No segundo, eu, Márcio e Clarissa.

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Abertura e especulação: sobre Yellow Bastard
De alguma forma, foram dois encontros voltados para um mesmo propósito. Partindo de um resumo bastante simples acerca da história dessa nova criação, abrimos - em roda - perguntas, imagens, afirmações, dúvidas que pudessem dinamitar ainda mais os sentidos que, porventura, já estão por demais fixos. Assim, como era esperado por mim, coisas novas se abriram e outras se tornaram menores, menos importantes.
Como saldo desses encontros, deparamo-nos com o mais importante desafio: trata-se de uma criação não no sentido de que é uma nova peça da companhia, mas no sentido de que a fábula sobre Yellow Bastard é uma invenção por si só, diz respeito a um extraterrestre no planeta Terra numa trama sobre maternidade, traição, intolerância etc. Ou seja: não há como operarmos criativamente como se fosse apenas a criação de uma peça. É a criação, sobretudo, de um universo, uma linguagem, um modo de usar e manusear a linguagem (o corpo, a língua falada, os gestos e ações, codificações inúmeras...).

A importância da poesia
Do primeiro ao segundo encontro, percebi que a importância então residia primordialmente na compreensão de que estamos criando um poema. Eu, dramaturgo, escrevo um longo poema. E é isso. Como a cena teatral vai interpretá-lo, como vai coloca-lo no palco, isso já são questões ultrapassadas. A cena não precisa interpretar, a cena não precisa colocar nada. A material textual a ser composta não será transcrita em cena, mas estimulará o aparecimento da cena, estimulará a composição de atmosferas, ações, gestos e sensações que, por vezes, vão muito além do texto.
Assim, levei alguns poemas para que lêssemos. Levei breves falas sobre a linguagem da poesia, sobre as funções da linguagem, para que começássemos percebendo o nosso próprio corpo e a sua viciada maneira de explicar, reduzir tudo ao fechamento de um sentido capaz de explicar toda e qualquer coisa.

Contar a história da peça
No segundo encontro, fizemos esse jogo. Havíamos, no primeiro encontro, contado a história da peça. (Obviamente, descobrimos novas dobras, como por exemplo: Yellow está preso na Terra, mas se liberta e volta a Marte; quando chega em Marte, é aos marcianos que ele conta tudo aquilo que vivenciou aqui. Márcio, no segundo encontro, insiste que algo foi apreendido aqui e que Yellow não tem a mínima pretensão de abandonar isso ao ir embora da Terra). Ou seja: tínhamos muitas especulações sobre a fábula, bem como um material escrito - primeiro - que eu havia entregue impresso.

Ele quer reencontrar
a sua mãe
assim que ele chegar
no planeta amarelo
ele reencontra
a sua mãe
no meio de todos
os marcianos
amarelos
ele
reencontra
a sua mãe
ele sabe
ser mais
de uma coisa
poeira
mil
baratinhas

O jogo consistia em assumir uma posição no espaço da sala e contar sobre o que é a peça, contar a história de Yellow Bastard. Estávamos eu, Clarissa e Márcio no segundo encontro. Destaco algumas revelações que tivemos juntos e reitero o motivo que nos fez acessar tais revelações: estávamos jogando, de modo profano. Não tínhamos obrigação de fazer nada estipulado de antemão. Mesmo que eu tivesse dado objetivos ao jogo, eles foram se perdendo e anunciando novos e outros lugares. Em outras palavras, já em resposta a uma possível e excessiva mentatividade que diagnostiquei no primeiro encontro, estávamos "apenas" nos divertindo. E isso abriu os seguintes novos lugares para a criação:

- um grito
- a mão cobrindo a boca
- um riso preso
- uma necessidade constante de retornar do início
- pausas, muito ar
- voz trêmula
- excessiva gesticulação das mãos
- ano 1964
- descrições precisas ("tem muito amarelo...")
- afirmações (como um narrador onisciente: "ele sabe que voltando [a Marte] ele vai morrer. Ele não quer perder o que aconteceu aqui [na Terra]. Ele quer se dividir, se expandir"
- amor intolerância companhia brasil branco cor amarelo intolerância amor companhia
- "ele sabe ser mais de uma coisa: poeira, mil baratinhas..."
- o negativo do amarelo, o azul, muito azul
- um portal preto
- uma panela com pó de café e uma pena, alguma purpurina, "landscape" de Marte
- um pé atrás
- um telefone para Yellow
- falar tudo em inglês
- conversar com o futuro
- medo e amor, tudo ao mesmo tempo
um grito silenciado etc.

 A panela. A superfície de Marte (dentro da panela).


Uma proposta para janeiro de 2019 -
E então faço uma proposta no segundo encontro (ciente de que nosso cronograma ainda é instável, se montando a cada semana): sugiro que até fim de janeiro, a gente consiga montar a peça, fazer uma montagem meio "afoita" no sentido de passar pela história, pelos capítulos dela, passar pelas situações, profanar os modos de fazer e contar a história. Ainda que não seja uma montagem do espetáculo, antes disso, é a montagem da narrativa, a composição da fala.
Após essa montagem, o meu propósito é justamente trabalhar sobre o material com um empenho de DESFIGURAÇÃO do que foi criado. Desfigurar no sentido de apagar traços de literalidade, de moralidade e senso comum; no sentido de procurar e calibrar, de compor a estranheza natural desse extraterrestre (seu modo específico de ler, interpretar e escrever o mundo).

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Superfície - Landscape


Ontem, eu, Andrêas Gatto e Márcio Machado fomos ao cinema assistir "Blade Runner 2049". Foi uma interessante experiência, talvez mais por aquilo que nossas conversas anunciaram sobre YELLOW BASTARD do que propriamente sobre o filme, que é bastante interessante. O que escrevo nesta manhã fria e um pouco chuvosa de outubro é sobre tudo aquilo que, pouco a pouco, sem esforço, vai se firmando em mim sobre esta nova criação.

Três atos? Divisão da ação: clausura, depois liberdade, depois extra-Terra. Primeiro ele enclausurado. Depois ele quando conhecendo e tocando o horror humano. Por fim ele em sua casa de origem, em Marte. Ou seja: o espaço determina a (escrita da) ação, o espaço situa as ações: situações. Assim, a dimensão temporal se modifica. Não é linear a sua cronologia. Ela começa com ele na prisão (não teríamos um prólogo). Depois resgata vivências dele antes de ser preso. E, por fim, ele já liberto do planeta Terra, ele em Marte.

No que me serve essas especulações sobre a divisão da ação? Elas me ajudam a compor, pouco a pouco, o plano da dramaturgia. Não me deixam cair na armadilha do detalhe. Aos poucos, por conta desse jogo de esboço da ação, vai se anunciando justamente o que é importante nessa fábula. O que precisa ser dito? Sempre para fora. O que precisa ser dito e em qual momento? O que o leitor-espectador já sabe? Um balanço entre sensação e informação.

Algumas coisas se anunciaram:

- A questão com as dimensões do universo: a princípio, nós, seres humanos, acessamos apenas quatro, mas parece existir cerca de dez;

- Se esse personagem, por ser nascido em Marte, possui outra sensibilidade (eis aqui o poder do super herói), essa sensibilidade outra (estrangeira, distinta do ser humano) é justamente o nosso fazer artístico, é justamente a arte, o teatro, a poesia. Assim, nosso personagem tem algo que o homem terráqueo não tem: um outro tipo de sensibilidade (eu diria, arriscando e me lançando um problema, que há algo aqui da "ficção" de Rancière, ou seja, este personagem é alguém com altíssima disponibilidade para se colocar no lugar do outro, para mudar de posição);

- Através dessa sensibilidade, ele entra em contato com alguns acontecimentos da história (não apenas recente) da humanidade e tais acontecimentos confirmam o seu estrangeirismo: ele fica completamente amarelo ao se confrontar com o horror humano. Quanto mais horror, mais ele se reconhece a si mesmo: afirmação trágica da vida, Nietzsche;

... > DIMENSÕES > SENSIBILIDADE RADICAL > ESTRANGEIRISMO > ...

Quanto mais se é sensível mais se é estranho à condição humana.

E ele é o auge dessa sensibilidade-estranheza. Ele não é humano e essa não é a questão, a questão que se anuncia é: o que é o humano aos olhos desse ser? Quem é o ser humano aos olhos dessa outra espécie que não é terrestre, que não é humana?

As abstrações precisam cair. Marte é o deus da guerra. Quem inventou isso? Talvez este nosso marciano não queira guerra, não esteja preocupado em dominar nem colonizar. Outras narrativas, por favor.

Vasculhar os mitos.
Profaná-los.
Que abismo.

sábado, 24 de junho de 2017

Há vegetação em Marte? Estamos em Marte?



Eu estava em Buenos Aires, na Argentina, numa festa. No quintal, próximo ao salão de festas do apartamento em que acontecia a festa, vi essas luminárias sobre o gramado. De imediato me veio Yellow Bastard. Tirei essas fotos e fiquei pensando se a vegetação não existe lá também, lá em Marte. O que sabemos de Marte é um projeto que domestica o nosso real saber sobre Marte? Suspeito um pouco. Não sei se não tem água lá. Outra coisa: o que importa Marte - em nossa criação - ser como é Marte na realidade? Alguém entre nós conhece Marte de fato? E mesmo que esse alguém soubesse tudo de Marte, estamos criando uma parada, correto? Podemos fazer dela e com ela aquilo que acharmos importante fazer. Desde que com algum propósito. Não importa se tem ou não vegetação, importa, antes, que a gente se pergunte: para que essa história? Para que essa peça? Para que Marte? Para quê? Para quem?