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quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Qual diferença ele possui?



Sigo me encontrando com Márcio, agora com mais frequência. Foram dois encontros nesse mês de dezembro e pretendemos seguir até o fim do ano. Em janeiro, é previsto começarmos algum tipo de prática envolvendo ações na cidade. Não sei ainda. O que estamos tramando? É tanto. A certeza é apenas uma: quanto mais nos encontramos presencialmente mais desdobramos essa criação. E se eu escrevo agora, neste blog, é mais para frisar o que já ficou marcado em mim.

Hoje íamos ler alguns trechos de textos e acabamos não fazendo nada disso. Ficamos um bom tempo conversando sobre alguns pontos do percurso desse ser. Contei ao Márcio que sigo escrevendo uma cronologia de fatos vividos por nosso personagem (desde 1974 até 2000 e vinte e poucos). Dentre esses fatos, para além de detalhes específicos da vida da personagem (o dia em que passou pela situação tal), encontram-se também marcos da história da humanidade, porém, nem sempre fatos emblemáticos, às vezes apenas situações como o dia em que um jovem profanou uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida no Brasil.

Quanto mais tornamos específico o caminho do personagem, quanto mais os detalhes, mais conseguimos vislumbrar alguma existência do mesmo.

Em nosso encontro, cheguei munido do livro HIPERESPAÇO de Michio Kaku. Foi o Gunnar Borges que me emprestou esse livro. Na época, faz uns meses, eu estava querendo entender mais o assunto das dimensões de espaço e tempo. Não entendo nada, mas sigo investigando. Ler teorias da física complexifica ainda mais a coisa e parece tornar a poesia ainda mais possível. Uma contradição, talvez, mas sigo mexendo com tudo.

O interesse nas dimensões de espaço e tempo veio quando eu comecei a perguntar o seguinte: qual é a diferença que esse ser extraterrestre possui em relação aos humanos? A primeira delas é evidente, diz respeito à sua cor amarela. Isso o torna diferente, porém, é uma diferença óbvia, visível, étnica mesmo. Nada estranho ao nosso mundo.

Por que, eu poderia perguntar, por que a necessidade de uma diferença ainda mais marcada? Ora, se YELLOW BASTARD nasce como uma investigação da intolerância humana, eu preciso oferecer contraponto. Veja: não para fazer mero drama, mas para - justamente - operar dialeticamente, oferecer contraponto visando uma síntese mais complexa: tese, antítese, síntese. Talvez.

De qualquer forma, para além da pele amarela, há algo nesse ser que extrapola a condição humana, que a assusta justamente por ser diferente. Há um saber, uma consciência sensível, uma consistência muito afetiva, estrangeira (que lembra Jesus Cristo) e que diz respeito unicamente ao modo pelo qual esse ser sente. Não é uma questão cultural, de criação, por exemplo. É uma questão fisiológica, interna, do corpo. Diz respeito a uma sensibilidade (uma filosofia prática).

Sobre essa capacidade/habilidade de YELLOW, eu poderia arriscar algumas hipóteses: quando informo que há outra sensibilidade, retomo a discussão sobre as dimensões. Eu acho que esse ser é menos eu e mais o outro. Ele é mais passagem, mais caminho do que ser centrado e individuado. Fiquei pensando qual diferença seria de fato ameaçadora à raça humana? Ora, uma existência que não se acha o centro do universo seria uma ameaça ao homem. Uma existência que não vê no "eu" a salvação do planeta, sem dúvida, é uma grande ameaça (sobretudo porque tal existência é praticamente uma negação muito contundente de tudo o que nos acostumamos a ser e a buscar).

A sensibilidade de YELLOW é a de ser passagem, é a de ser caminho, para o outro, para outras narrativas; narrativas da alteridade. A sensibilidade dele - que é quase um super poder - é para o fora, não para si, não para o dentro apenas. É, desde já, uma crítica ao antropocentrismo. Ele tem a habilidade de ser frequentado pelas coisas mais do que apenas ser alguém. Ele, nesse sentido, vive a vida em tempo espiralado, em simultaneidade, junto ao eterno retorno.

O que já foi e o que virá coexistem nesse instante presente em que se é e no qual se está. A guerra do passado vive agora no futuro que nem veio, mas que já está aqui. YELLOW BASTARD zomba das cronologias e concatenações e causalidades todas. YELLOW tem desinteresse por arranjos lógicos que, talvez, predeterminem o todo.

Para fazer nascer essa criação, é como se eu tivesse que me pergunta o que há no ser humano que eu precise exterminar mesmo.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Introdução de Diferença - Parte 2

Não esperava voltar assim tão cedo a essa mesma discussão. É só que ontem isso ficou martelando meus pensamentos. Chovia, eu fumava um cigarro, e me peguei novamente pensando nessa coisa que já é quase um refrão em minha cabeça: introdução de diferença, introduzir diferença, fazer da criação artística um projeto de diferenciação do que é a realidade.

O que tais afirmações abrem?

A ingenuidade desse refrão parece ir morrendo pouco a pouco. Tento desenvolver um pouco mais essa proposição mais clara e estruturante do que seria uma imagem poética, a partir de Aristóteles (e, em especial, da tradução que Paulo Pinheiro fez de sua POÉTICA). Retomo: o poema mimético - uma dramaturgia, por exemplo - não apresenta a vida tal como ela é (na realidade), mas sim uma imagem poética que um poeta (o dramaturgo) faz dessa realidade.

Uma dramaturgia anuncia não aquilo que a vida propriamente é, mas, com ênfase, aquilo que ela ainda não foi, aquilo que ela ainda pode vir a ser.

É bonito, sem dúvida. É inegavelmente estimulante, mas, de fato, como? Ou, de fato, o quê?


Volto-me então à narrativa, à fábula (e preciso estudar mais sobre isso). A diferença de que tanto falo seria apenas do "conteúdo" da trama ou, em adição, poderia ser também diferença em sua "forma". Forma e conteúdo, mais uma vez. Quero dizer: a fábula desse extraterrestre se revela diferente da nossa realidade hoje apenas por aquilo que ela apresenta dessa existência ou o modo através do qual ela revela esse personagem (e seu percurso) é já também alguma diferença em si?

A resposta é óbvia: conteúdo e forma são agentes da diferença; catalisadores de diferenças, de transformações e reformas. Porém, mais uma vez, quais? O quê?

Sigo com três atos. Três unidades de ação. Não saberia dizer se estão em ordem cronológica ou não, e isso influencia tudo o que virá. No entanto, são três atos para concatenar essa fábula ou são três atos para impor a diferença à ordem do dia? Pensar os atos como instauradores de diferença, assumir a busca e o risco do buscar.

Talvez apenas eu consiga entender - mais ou menos - isso que escrevo, porém, o gesto de escrever neste blog dinamiza muita coisa em mim e para mim. Penso nos atos: denúncia, resposta e proposta. Três palavras que retiro daquilo que Eleonora Fabião afirma sobre a prática da performance em uma entrevista dada ao repórter Fábio Freire: "A performance surge no cenário pós-guerra como uma denúncia, uma resposta e uma proposta".

Eis a diferença. Não basta denunciar nem responder, é preciso propor. Por isso três atos. Sobretudo, porque até o presente momento, as criações do Teatro Inominável estiveram muito concentradas - e mesmo ensimesmadas - na denúncia, em tocar nos horrores de nossa época e ponto. Obviamente, seria impossível não fazer dessa maneira, operamos tudo isso criticamente. Uma mudança na duração de um gesto abre uma dimensão bastante reflexiva sobre tal gesto. Uma repetição deflagra perguntas inquietantes sobre um determinado assunto. Porém, é necessário mais porque quando penso em uma proposta não penso em uma hipótese, penso mesmo numa realização.

Propor é fazer acontecer; propor é ação que age.

O que YELLOW BASTARD propõe? O que efetiva? O que do mundo denuncia, a que mundo essa criação responde e que mundo outro ela propõe?

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Superfície - Landscape


Ontem, eu, Andrêas Gatto e Márcio Machado fomos ao cinema assistir "Blade Runner 2049". Foi uma interessante experiência, talvez mais por aquilo que nossas conversas anunciaram sobre YELLOW BASTARD do que propriamente sobre o filme, que é bastante interessante. O que escrevo nesta manhã fria e um pouco chuvosa de outubro é sobre tudo aquilo que, pouco a pouco, sem esforço, vai se firmando em mim sobre esta nova criação.

Três atos? Divisão da ação: clausura, depois liberdade, depois extra-Terra. Primeiro ele enclausurado. Depois ele quando conhecendo e tocando o horror humano. Por fim ele em sua casa de origem, em Marte. Ou seja: o espaço determina a (escrita da) ação, o espaço situa as ações: situações. Assim, a dimensão temporal se modifica. Não é linear a sua cronologia. Ela começa com ele na prisão (não teríamos um prólogo). Depois resgata vivências dele antes de ser preso. E, por fim, ele já liberto do planeta Terra, ele em Marte.

No que me serve essas especulações sobre a divisão da ação? Elas me ajudam a compor, pouco a pouco, o plano da dramaturgia. Não me deixam cair na armadilha do detalhe. Aos poucos, por conta desse jogo de esboço da ação, vai se anunciando justamente o que é importante nessa fábula. O que precisa ser dito? Sempre para fora. O que precisa ser dito e em qual momento? O que o leitor-espectador já sabe? Um balanço entre sensação e informação.

Algumas coisas se anunciaram:

- A questão com as dimensões do universo: a princípio, nós, seres humanos, acessamos apenas quatro, mas parece existir cerca de dez;

- Se esse personagem, por ser nascido em Marte, possui outra sensibilidade (eis aqui o poder do super herói), essa sensibilidade outra (estrangeira, distinta do ser humano) é justamente o nosso fazer artístico, é justamente a arte, o teatro, a poesia. Assim, nosso personagem tem algo que o homem terráqueo não tem: um outro tipo de sensibilidade (eu diria, arriscando e me lançando um problema, que há algo aqui da "ficção" de Rancière, ou seja, este personagem é alguém com altíssima disponibilidade para se colocar no lugar do outro, para mudar de posição);

- Através dessa sensibilidade, ele entra em contato com alguns acontecimentos da história (não apenas recente) da humanidade e tais acontecimentos confirmam o seu estrangeirismo: ele fica completamente amarelo ao se confrontar com o horror humano. Quanto mais horror, mais ele se reconhece a si mesmo: afirmação trágica da vida, Nietzsche;

... > DIMENSÕES > SENSIBILIDADE RADICAL > ESTRANGEIRISMO > ...

Quanto mais se é sensível mais se é estranho à condição humana.

E ele é o auge dessa sensibilidade-estranheza. Ele não é humano e essa não é a questão, a questão que se anuncia é: o que é o humano aos olhos desse ser? Quem é o ser humano aos olhos dessa outra espécie que não é terrestre, que não é humana?

As abstrações precisam cair. Marte é o deus da guerra. Quem inventou isso? Talvez este nosso marciano não queira guerra, não esteja preocupado em dominar nem colonizar. Outras narrativas, por favor.

Vasculhar os mitos.
Profaná-los.
Que abismo.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Espaço Ficcional

Acabo de chegar de um encontro com o ator Márcio Machado. Um mês após a finalização do roteiro do curta-metragem (prólogo) de YELLOW BASTARD, nos encontramos para darmos continuidade e aprofundar o processo de criação da peça (com estreia agendada para junho de 2018 no Rio de Janeiro).

Para além das inúmeras anotações que fiz em meu caderno, destaco uma: a dimensão ficcional. É uma criação que precisa ser gastada na sua dimensão fabular (inventada e inventiva). As certezas, nesse momento da criação, morrem todas. É preciso se perguntar tudo novamente e, pouco a pouco, decidindo alguns aspectos dessa história.

Vamos contar uma história. Sim, uma história, outra história. Um extraterrestre que vive no planeta Terra de 1968 a 2018. Nesse percurso, entre humanos, ele vive o desafio de se tornar quem ele de fato é - um extraterrestre, marciano, pele amarela - e também a crueldade de ser alvo da intolerância humana. Conversamos muito sobre familiaridade e estranhamento, sobre identificação e estranheza/transformação, sobre Aristóteles e Bertolt Brecht.


Auschwitz: rede de campos de concentração no sul da Polônia.


Sobretudo, percebo: não é uma criação onde um ator vai falar um texto, performar a dramaturgia. É um trabalho de composição de um personagem enredado dentro de uma dimensão ficcional. Específica da fábula. Ou seja: onde ele está? Está preso? É refém de alguém ou algo? Ele fala para quem e a partir do quê?

Volto à importância que julgo ter a situação. A situação explode e apresenta o personagem e seu drama. O personagem não se mostra para o espectador, é o espectador quem o recebe a partir do drama em acontecimento, em situação. Ou seja: se ele está aprisionado, se começa a "peça" preso, numa cela "qualquer", é a partir desse contexto - dessa situação - que sua fala explode e o espectador pode então ler o drama, vê-lo acontecer.

Lembro-me dos campos de concentração. Lembro-me de Auschwitz. Lembro-me da inteligência humana a favor do extermínio humano. Lembro do vínculo entre as palavras DIFERENÇA e INTOLERÂNCIA. Há uma proporção indireta, me parece: quanto menos se é quem se é, maior a intolerância. Disse ao Márcio: primeiro conosco, por sabermos que somos algo que não aceitamos (por conta da moral, da tradição, da família e religião) e nos repudiamos por isso; na sequência, a intolerância que primeiro nasce contra si próprio, resvala ao outro, pois o outro não pode ser alegremente quem eu sou.

Eis o cerne, me parece. Por enquanto, eis um cerne.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Introdução de diferença

O que sabemos é pouco ainda: um extraterrestre, um marciano, habitando o planeta Terra faz quatro décadas, agora vai retornar ao seu planeta de origem, mas, antes de a ele retornar, deixará algumas palavras ao ser humano. É isso o que temos. E o que mais?

Pensamos sobre a intolerância humana. Queríamos e queremos dar a ver algo sobre a intolerância do homem. Isso nos fez pensar a história da humanidade, tão preenchida desses casos de violencia e destruição, morte e ódio. Certo. E mais o quê?

Seria preciso então pensar o modo pelo qual essa história seria contada e inventada. O modo como um procedimento que, desde já, anuncia os conteúdos todos. Eu quero dizer: a coisa está no modo pelo qual ela será apresentada. Pensemos: se ficarmos presos apenas a esse relato desse extraterrestre, pouco abriremos de diferença em relação ao que ele poderia, inclusive, nos dizer sobre a raça humana. Porém, se especularmos outra forma que não apenas a do relato, então, inevitavelmente, veremos outro tipo de assunto brotar em nossa criação.

Ainda não me faço claro. Eu quero dizer que a diferença está, primeiramente, no modo pelo qual essa fábula será apresentada. Se quisermos que tal fábula atualize algumas características da condição humana, então, inevitavelmente, teremos que ousar outros modos de contar. Porém, por que essa exigência de introduzir uma diferença?

Isso me chega através do Aristóteles. Para ele, a mimesis não seria uma reprodução da realidade tal como ela é, mas uma operação técnica e se produção - uma poiesis - que introduz nessa mesma realidade uma diferença. Ou seja, a obra de arte não é mera fotografía do real, mas, justamente ao contrário, um espaço-tempo que transforma esse mesmo real.

Por isso me pergunto: onde está a diferença em YELLOW BASTARD? Para além de termos um marciano falando à raça humana, onde está a diferença? Seria em sua sensibilidade (poética) para ler o humano? Seria a sua linguagem e o modo pelo qual ele aprendeu a nossa?

A partir dessa semana, início de agosto de 2017, começaremos a nos encontrar semanalmente para começar - de fato - essa criação. Este blog, então, passará a ter mais registros do caminho criativo.

sábado, 24 de junho de 2017

Há vegetação em Marte? Estamos em Marte?



Eu estava em Buenos Aires, na Argentina, numa festa. No quintal, próximo ao salão de festas do apartamento em que acontecia a festa, vi essas luminárias sobre o gramado. De imediato me veio Yellow Bastard. Tirei essas fotos e fiquei pensando se a vegetação não existe lá também, lá em Marte. O que sabemos de Marte é um projeto que domestica o nosso real saber sobre Marte? Suspeito um pouco. Não sei se não tem água lá. Outra coisa: o que importa Marte - em nossa criação - ser como é Marte na realidade? Alguém entre nós conhece Marte de fato? E mesmo que esse alguém soubesse tudo de Marte, estamos criando uma parada, correto? Podemos fazer dela e com ela aquilo que acharmos importante fazer. Desde que com algum propósito. Não importa se tem ou não vegetação, importa, antes, que a gente se pergunte: para que essa história? Para que essa peça? Para que Marte? Para quê? Para quem? 

De volta às intuições

Com a calma de quem nada quer fazer brotar, a partir de agosto começaremos a nos reunir uma vez por semana para alimentar a criação dessa nova criação do Teatro Inominável. Até o presente momento, já foram vários encontros, mas tudo sem eixo, tudo meio solto (apesar de termos desejado continuar a criação, isso nunca foi possível). Agora, no entanto, será.

Temos um patrocínio e uma data para estrear: junho de 2018. Não sabemos muito do que se trata a coisa toda, apesar de sabermos já um bocado de coisas. Mas, nesse caso, no caso de Yellow Bastard, saber é o que menos importa agora. É preciso voltar às intuições para resgatar - sem muita força - aquilo que brotou feito arrepio. Para que possamos compor não um eixo feito de ossos ou músculos, mas apenas de sinapses e nervos. Estilhaços de imagens e arrepios.

Como conceber a consistência de uma nova criação artística, teatral? Do que ela é feita? Do que queremos que ela seja composta? São perguntas interessantes de se fazer. Quais ingredientes entram em nosso jogo? Podemos escolher todos ou devemos ceder ao imprevisível para que entre nós pouse também aquilo que não foi por nós escolhido? Voltar às intuições para preservar e cuidar dos arrepios.

Sempre que escrevo essa palavra - intuição - outra palavra pousa em mim: arrepio. Intuição-arrepio. Arrepio enquanto intuição que não sabe o destino, desconhece os fins, as finalidades, mas é tão intensa em si própria que isso já faz bastar sua existência. Resgatar as intuições para eletrocutar o corpo novamente. Para vermos onde dá brilho, onde - em nós, em nosso encontro - a faísca existe, respira e incendeia.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Fora da Caixa

Pois como é difícil pensar fora da caixa. A linguagem teatral se antecipa a todo e qualquer arrepio e, muitas vezes, um processo de criação move mais esforços tentando se livrar das exigências predeterminadas do que propriamente vendo brotar uma nova criação.

No caso desse projeto, o que temos é quase nada. Um ator - Márcio Machado - e um diretor-dramaturgo, eu, além dos outros artistas integrantes do Teatro Inominável. Não temos muita coisa definida, exceto a potência de um desejo de realizar, de contar uma história que possa trazer dúvidas ao mundo de hoje.

Mas, como é difícil. Fico me perguntando como é possível se livrar dos códigos e das linguagens para acompanhar a criação através do arrepio que é o desejo. Sempre a mesma busca, sempre a mesma indagação. As imagens me chegam não como revelações, mas como um modo de corromper e atravessar os modelos instituídos. Ou seja, elas já me chegam rendidas por tudo isso.

Osso. Ao menos, preciso reconhecer, entre nós há desde o princípio o diagnóstico desse desafio criacional. Da escuridão das poéticas cênicas e dramatúrgicas, vejo algum vislumbre de que pensar Yellow Bastard para fora de si - com um destinatário evidente que não a própria criação - seria um modo de fazer com que essa peça venha ao mundo.

sábado, 6 de maio de 2017

O que uma criação pode mover?

Tenho observado, com algum espanto, como uma criação teatral pode mover o nosso olhar e a nossa sensibilidade em direção à vida cotidiana. Por certo, movemos - nós, artistas - cada nova criação. No entanto, é precioso reconhecer o que pode mover uma criação para além da criação em si.

Os olhos passam a ver - ou, ao menos, a espreitar o interior que mora dentro das coisas. A busca pela verdade se desmancha e o caminho vira instante, instantes sucessivos e que não carecem, ainda, de um contorno preciso. Uma nova criação artística move em quem a cria essa consistência de processo em que o mais vital é justamente a multiplicidade de rumos e sentidos, a despeito de um inevitável fechamento.

Não há nada para ser encontrado. Não ainda. Uma criação nos move à produção de outro corpo, não apenas à produção de uma peça de teatro. Solicita em nós, ainda que tal consistência possa ainda não existir, solicita outro modo de operar com desejos e indefinições. Tudo - mesmo - vira jogo, tudo diz respeito à criação.

Neste caso, Yellow Bastard, não importa o que já descobrimos. Nem o que planejamos, o que já foi vivido quiçá o que está por vir. Ainda hoje só o que importa é o desejo inventivo e ele se traduz transparentemente feito um caminho, um ir que não precisa chegar porque ir é já estar. Ir é criar.

Um monólogo teatral. Teatral? Monólogo? Uma ação acontecendo na presença de outras e outros. Um ator, uma grande equipe, um gesto é o que vamos compor. Vamos compor um gesto. Um gesto é o que estamos compondo. Um dizer. Uma fala. Uma treta ao mundo destinada.

Ou: um destino a esse mundo treta, mundo tretado, mundo coisa, mundo coisificado. Uma outra e nova possibilidade em meio à falência das possibilidades.