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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Encontros #5 a #11

De fato, vai ficando difícil registrar cada encontro. De alguma forma, considero essa dificuldade interessante porque ela manifesta como a coisa vai se revelando no tempo dela, sem ser refém de uma teorização constante de cada passo. E é isso mesmo, posso confirmar, a coisa vai se escrevendo no decorrer dos dias, quer se intencione ou não, ela se escreve, vai se compondo.

Neste momento, após um mês de trabalho - e precisamente 11 encontros em sala de trabalho -, conseguimos não apenas fundar um universo narrativo como também entender, minimamente, como o processo criativo poderá seguir. Hoje, fizemos o nosso décimo primeiro encontro, apenas comigo e com o Márcio, e reconhecemos alguns aspectos que vou tentar registrar a seguir.

Não é uma peça sobre um assunto, não é sobre a intolerância ou sobre o fascismo. É uma criação artística que coloca em cena um ser humano em questão, em plena atividade do questionamento (de si). Muito falamos sobre "O Narrador": tanto o ensaio de Benjamin, a performance do Inominável e a figura, propriamente, de alguém que narra, conta histórias. Vai se firmando um desejo muito honesto e radical de que este espetáculo é a confidência, presencial, de um homem que em dado momento de sua vida se questiona sobre quem é, sobre quem se tornou, quem deixou de ser.

Hoje, disse ao Márcio a palavra "neoliberal". Conversávamos sobre como o projeto neoliberal opera essa plástica padronizadora em nossas subjetividades e singularidades. Ele solapa nossa especificidade e nos torna unicamente produtivos ao seu processo (sempre autofágico, demasiadamente acelerado e brutalmente desumano). Disse a fala de uma dramaturgia que escrevi ano passado: "eles produzem o remédio para a doença que criam". Nem sequer falávamos, por exemplo, sobre o crime ambiental cometido pela mineradora Vale. Em suma, falei de tudo isso para reconhecer a importância de voltarmos a ser quem somos, voltarmos às origens e à barbárie de nossos desejos mais infantis e primários.

Kairos
Afresco do século XVI
por Francesco Salviati

Ao telefone, à tarde, conversando com o diretor Andrêas Gatto, reconhecemos que a peça trata disso. Relembrei a ele o subtítulo da autobiografia "Ecce Homo" de Friedrich Nietzsche: "Como se tornar aquilo que se é". Porque é preciso muita luta e agressividade para se permitir ser, socialmente, quem de fato sentimos que somos. E, antes disso, é preciso muita força para ser quem se é, em primeiro lugar, a si mesmo.

Nosso personagem está descobrindo que ele é alguém que foi escondido e esquecido dentro de si próprio. É a vertigem dos acontecimentos que o faz acessar esse ser esquecido, tornado estrangeiro e lacrado dentro de sua carapaça de homem branco e vencedor. Por isso, também aqui registro outra revelação que os primeiros encontros em sala de trabalho nos fizeram perceber: nossa peça articula de modo simultâneo e sobreposto distintos espaços e tempos (lemos um pouco sobre Kairós). Se em vida estamos presos ao tempo cronológico, causal e linear, em cena, ao contrário, podemos saltar tempos e espaços, fazendo aparecer num mesmo instante o antes e o depois, o agora aqui e noutro lugar.

Uma confissão. Uma experiência limite, transformadora, um voltar a si mesmo e um nunca mais se esquecer. Uma lembrança de que sou quem tentam me fazer não ser. Um manifesto de si, mas, sobretudo, enquanto personagem, um convite ao público - e a nós mesmos - para que tenhamos força e agressividade para ser quem somos, independente das morais e valores que nos empalidecem e desvitalizam.

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