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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Encontro em companhia

No encontro de ontem - nosso encontro de número 16 - fizemos uma partilha de dois processos de criação do Inominável que estão acontecendo simultaneamente. Um deles é uma criação (ainda sem título) com performance de Laura Nielsen e o outro é YELLOW BASTARD. Na criação de Laura, a direção é da inominável Natássia Vello - com assistência de Clarissa Menezes - busca, a partir de um texto-provocação que escrevi em dezembro, reencontrar as ancestrais (reais e inventadas) da atriz.

Na semana passada, estive num dos ensaios das meninas e, com espanto e alegria, percebi que o processo delas conversa muito com o nosso. Sugeri, então, que dividíssemos a sala de ensaio para que ambas equipes pudessem ver o que cada criação está buscando. Por isso, tento agora destacar alguns pontos que me parecem interessantes de se destacar:




ESPAÇOS E TEMPOS

Ambas criações possuem relações fundantes com as dimensões espaciais e temporais. Num projeto, os espaços e tempos se sobrepõem e misturam de maneira evidente, sem nenhuma tentativa de organização linear e causal. Este é YELLOW (pelo menos, até o presente momento). No outro, há um tempo - uma hora inerte, a do encontro de Laura com suas ancestrais e também com o público que estará na sala de apresentação - e um espaço (a sala de uma casa); no entanto, pelo jogo da criação, o tempo presente é pretexto para que outros tempos possam surgir e ser (re)visitados.

Em outras palavras, o que essas criações operam é o jogo teatral, poderia dizer, por excelência. O tempo presente - o tempo da ação teatral - é um espaço-tempo disponível ao movimento, aos trânsitos e deslocamentos (espaciais e temporais). Firma-se o pacto para, no caminho, desnortear tudo, abrindo novas relações de velocidade e lentidão - de afeto - entre a cena e o público que a vê.

BIOGRAFIA E FICÇÃO

As duas criações também fazem um uso absolutamente profano das biografias da atriz e do ator. Seu texto biográfico aparece sem a necessidade de se autodeclarar biográfico. A malha biográfica serve como matéria para a composição da dramaturgia final que é, propriamente, a cena (onde serão reunidos os espectadores, os performers, o texto, os gestos e as ações, enfim, o acontecimento artístico em si). Quero dizer que a biografia perde um valor maior (no sentido de que perde a sua aura, a sua possível inércia, a mesura que faríamos normalmente a ela) e vira algum tipo de matéria que pode ser usada e deslocada, destruída e refeita.

Nesse sentido, a ficção assume aquilo que tanto friso a partir de Jacques Rancière:

Ficção não é criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas e entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. Esse trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 64-65.




FEMINISMOS E ANTROPOCENTRISMOS

Impossível não perceber que, em ambas criações, o homem gênero masculino é posto em questão: seja porque a mulher salta e se afirma na sua potência presencial e ancestral; seja porque um homem branco vencedor, subitamente, descobre que dentro dele vive outro (um alienígena). De certa forma, a partir de Virginie Despentes e sua TEORIA KING KONG, percebo que há um esforço delicado não em maltratar a figura homem gênero masculino, mas, ao contrário, um esforço - delicado - em tornar perceptível que a lógica binária dos gêneros já não dá conta da estranheza que sempre nos constituiu e que agora, por motivos inúmeros, parece querer saltar, aparecer, se lançar e se fincar em nossas existências cotidianas.

O TEXTO TEATRAL COMO MATÉRIA, MATERIAL, MATERIALIDADE

Por fim - escrevo para Laura Nielsen, Márcio Machado e também para o diretor Andrêas Gatto e a diretora Natássia Vello:
Eu, como dramaturgo, ainda mais como artista integrante de uma companhia teatral, tenho encarado o exercício da dramaturgia como um meio do caminho. O que isso quer dizer? Quer dizer que o texto escrito, impresso e entregue, antes de ser uma chegada, é assumidamente um caminho, um convite à experimentação. Penso, assim, que não é possível ler um texto buscando nele a realização final, as chegadas, os contornos precisos da cena ou da fala do ator e da atriz. Destituir o texto do seu trono não é fazer pouco caso dele. Antes, é valoriza-lo ainda mais, pois não mais o tratamos como um manual, um projeto de verdade (fascista, portanto). Destituir o texto de seu trono é reconhecer que as autorias e autoridades (o homem, o autor, o texto, a obra fechada) estão morrendo e precisam morrer. Perde-se o contorno (prisão) do texto para compreender as palavras como matéria e, enquanto tal, como potências do por vir. A palavra pode. A palavra pode anunciar outros textos, outros sentidos, para além dos mais imediatos. A palavra volta a ser matéria, antes de ser sentido. Para que isso aconteça, é preciso usa-las não como quem chegou a algum lugar, mas como quem está abrindo lugares e mais lugares que, em sala de trabalho, serão contornados, compreendidos e intencionados. Se a palavra volta a ser matéria, logo, o nosso trabalho volta a ser artesanal, volta a ser um longo trabalho de composição, montagem e modelagem.
Que delícia tudo isso.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Encontro #3


O que sabemos sobre YB –

O encontro de hoje, terceiro encontro desde que começamos 2019, foi extremamente revelador. Nele estavam presentes eu (diretor e dramaturgo), Andrêas Gatto (diretor assistente) e Márcio Machado (ator). O objetivo desse encontro, a partir de um planejamento feito por mim, foi imaginar a narrativa desta criação em dois momentos (como se ela acontecesse em 02 atos): um primeiro momento no planeta Terra e o momento seguinte em Marte.
Levei impressa uma breve “cena” em que o personagem Yellow Bastard, aprisionado numa cela no planeta Terra, faz um pedido ao vigilante que o vigia. A seguir, transcrevo a cena já adulterada pelo jogo que fizemos (o jogo do “desfigurar” que consistia em, sobre o papel impresso, riscar o “excesso” de palavras do texto, desorientando a trama escrita e abrindo outras possibilidades):


YELLOW se aproxima da grade frontal da cela onde está preso. Posiciona, em frente à ela, uma cadeira. Senta-se, mira o longo corredor cujo fim não se vê e fala ao Sentinela que mora ao fim desse corredor.

Sugou
Chupou
Comeu
Mastigou as melhores histórias que tinha
Estou seco agora
É justo
Você precisava ouvir
Outras histórias
Não te deixam
Livro ou televisor
Celular computador
Nada disso aqui te deixam
Te sinto
Por isso pediu
Que contasse histórias
Para viajar
Sem sair do lugar
Mas seco agora
É minha vez de pedir
Alguma coisa
Não suas histórias
Mas a sua
Total confiança

Aproximando o rosto da grade.

Caro Sentinela,
Posso?
Pelos sorrisos abertos
Pelas lágrimas
Nos seus olhos empoçadas
Uma retribuição
Por tudo isso
Apenas um
Este hoje
Pedido
Que conte
Minha história no depois daqui
Você me pergunta
Partir para onde?
Quando, Amarelo?
E como você partiria?
Trancado nessa cela
Prisioneiro
Do Estado
Ora, ora, meu caro
O Estado
É uma invenção do Estado
Posso partir
Sabes disso
Poderia sumir
Na hora que bem quisesse
Do jeito que inventasse
Em brevíssimo
Partirei, por isso
A urgência do meu pedido
Posso?

O Sentinela assente. YELLOW o percebe e se ergue.

Você me aceita
Aprendeu a me tolerar
Assente o meu pedido
Sem falar
E da minha língua
Para a sua
Meu pedido passa
Sobre a sua língua
Ele agora pousa
E pensa sua cabeça
Pesada, ela coça
Se vou mesmo embora
Você se pergunta
Meu caro, Sentinela
Vou-me mesmo
Já estou quase lá fora

As grades da cela atravessam o corpo de YELLOW, que chega ao corredor intacto e liberto.

Hora exata esta
Estou nas coisas todas
Sou todas elas
Mais nelas do que comigo mesmo
Estou do seu lado
Não se assuste, medo não
Iria de qualquer jeito
Poderia e posso
Nunca estive só
Lá e antes
Dentro e muito no fora
Estive nos cantos todos
Você nem viu
Mas lá estava
Lá estou agora
Por isso
Um pedido
Que conte
Para aquelas
Aqueles que restarem
Depois de mim
Conte-os
Conte o que descobri
O que comigo se deu
Quando estive junto
E colado
E sugado
Comido, chupado e mastigado
Conte
Lhe peço
Por tudo já te contado
Conte apenas Isso
Exatamente isso
Sobre isso
Que vocês teimam em chamar
De amor.

A tela pela qual se vigiam os prisioneiros em suas celas não consegue encontrar YELLOW. O Sentinela aperta um botão de emergência e o som da sirene ecoa sozinho pelo espaço da prisão. O Sentinela cantarola qualquer coisa, mas já não importa mais.

Acima, compartilhei a desfiguração feita por mim. Porém, as outras desfigurações (de Andrêas e Márcio) nos brindaram com outras descobertas. Eis um bom jogo para fazermos outras vezes, desfigurar o texto para ir secando as palavras até chegar ao mais essencial delas). Após tal jogo, pendurei na parede da sala de ensaio duas tiras de papéis (uma com a marca “Terra” e outra com “Marte). Nesses papéis, fomos escrevendo situações que teriam sido vividas por Yellow (em momentos distintos de sua vida), naqueles espaços específicos.
Não descreverei a seguir o que foi escrito nos papéis (tenho esse material aqui comigo), mas sim a conversa que brotou entre eu e os meninos. Por onde começar? (Foi tanta coisa!). Talvez eu pudesse escrever um breve texto (não explicando, mas) afirmando a coisa toda:

YELLOW BASTARD apresenta a história de um marciano que não sabe que é marciano. Não ainda. Ele chegou no planeta Terra em uma madrugada quente de novembro de 1974. Logo ao chegar, aterrissou no colo de uma mulher com seus quase trinta anos. Ela estava jogada sobre o terreno do lado de fora de sua casa, logo após ter sido espancada por seu namorado e ter perdido o seu filho, ainda em gestação. No momento em que Yellow é enviado à Terra, essa mulher acabou de enterrar o feto dessa criança que não pôde nascer. Quando ela acorda, sobre a terra do quintal, tem em seus braços um bicho estranho e amarelo, miúdo e sonoro. Talvez por muita dor (ou sabe-se lá por qual motivo), ela recebe e aceita essa estranha criatura e faz dela o seu primeiro e único filho, criando-o desde então. Ela amamenta a criatura que, num percurso de quase cinquenta anos de vida na Terra, vai ficando branca, com feições ainda mais humanas. Yellow aprende a linguagem dos homens, estuda em escolas, presta o vestibular, se muda para uma cidade maior, faz amigos e inimigos, sofre bullying quando e, ainda assim, se torna um brilhante advogado. Em 2018, porém, sua mãe terráquea é atropelada no centro de uma grande cidade[1]. No hospital, em seu leito de morte, “seu filho” a tenta socorrer, mas a gravidade da saúde dela o coloca numa situação extremamente instável: ele entra em contato com sensações ainda não vividas, especialmente a dor dilacerante que é perder alguém que se ama. É ali, naquele hospital, onde o corpo do marciano – que não sabia ser marciano – reage de modo inquestionável: irritado por ser impedido de tirar sua mãe do hospital (para leva-la em direção à casa onde ele julga ter nascido), subitamente sua pele começa a amarelar, como numa reação química, ele bruscamente fica amarelo, para desespero de sua “mãe” e terror das enfermeiras e médicos de plantão. Uma noite em uma vida inteira e agora ele está amarelo, completamente amarelo. Ele arranca a mãe do hospital e a leva até sua antiga casa, enterrando-a no mesmo solo onde, outrora, ele enterrou seu filho biológico (que sequer chegou a nascer). Prestes a morrer, a mãe terráquea tenta se desculpar por ter escondido de seu “filho” sua real origem (que nem mesmo ela soube dizer qual era). Após ser enterrada por Yellow, num corte lancinante e doloroso, ainda no terreno da casa de sua infância, jogado sobre a terra seca e escura, ele é atravessado por um grito, um descontentamento profundo (que ele ainda não sabe, mas vem de sua “mãe original”, o ser que o gerou, que ainda está em Marte). É que em Marte não há isso de pai ou mãe, nem de homem ou mulher. Em Marte, só o que há são seres – marcianos – que obrigatoriamente vão gerar outro ser, apenas um outro ser. No momento em que um novo marciano é gerado, a morte do ser que o gerou começa a sua contagem regressiva. No caso da “mãe” de Yellow, o que aconteceu – pela primeira vez – foi justo um crime, uma traição ou trapaça. Por não querer se ver longe de seu filho, por não querer simplesmente abandoná-lo ao destino, ela o teve, ela o fez nascer e o escondeu junto a si. No entanto, quando esse crime é descoberto, como punição, a mãe de Yellow continua viva, porém, seu filho recém-nascido – o próprio Yellow – é enviado para o planeta Terra, onde deverá permanecer ignorante e em penitência até o momento em que estiver prestes a completar cerca de cinquenta anos (mais ou menos a idade em que os marcianos geram suas crias). No dia em que enterra sua mãe terráquea, talvez pela primeira vez, Yellow gasta um tempo olhando em direção ao céu. O grito de sua mãe biológica talvez seja escutado por ele. Sua pele já está amarela, a desconfiança em relação ao mundo e a tudo é imensa; mais que tudo, ele sente. Não é apenas a pele, não apenas o corpo que, subitamente, despertou. Há uma dor de antes, uma indagação persistente que ele não sabe dar conta, posto nunca tenha estado junto a ela, ao menos não de maneira tão evidente. Ele mira ao céu e se pergunta como o impossível, subitamente, se torna possível. Durante quase cinquenta anos, na Terra, ele viveu uma vida considerada normal, se tornou um grande advogado. Atualmente, trabalhava num grande escritório de uma grande empresa. Tudo muito clichê, tudo muito grande, tudo muito branco. Às sextas, ia ao happy hour com os amigos do trabalho e, sentia, que progressivamente estava começando a se apaixonar por alguém. Yellow se tornou um homem modelo do sucesso, branco, advogado, bonito inclusive. Essa foi a vida que sua mãe terráquea conseguiu que ele tivesse. Uma vida bela, sem dúvida, mas escondendo – sob tanta maquiagem – quem ele realmente era e quem, inevitavelmente, um dia ele descobriria ser. Tudo isso acontece assim, de súbito, no dia em que ela morre: esse ser que foi escondido dentro dele próprio, finalmente, aparece. Aos poucos, primeiro, aos poucos, mas no correr dos dias, o amarelo toma a pele por completo, o corpo parece ser revirado e uma intensa e imensa disponibilidade ocupa cada pedaço da atenção daquele homem já não tão homem assim. Ele se pergunta, certa vez, mirando o rosto num espelho de banheiro: quem está trancado aí dentro, hein? Quem está preso dentro de mim? Ele não sabe responder, mas sente que a pergunta é o mais perto que ele pode chegar da vida. E é sentindo tudo, de novo e renovadamente, que ele vai percebendo ser mais do que sempre soube. Uma imensa disponibilidade o faz sentir as coisas ao redor, próximas a ele ou não. Uma escuta muito calibrada o faz ouvir os passos dados por baratas em ralos da grande cidade. As estrelas, o sol, o céu; tudo conversa com ele e ele, com tudo, também conversa. Como é possível, ele se pergunta, de um dia a outro perceber que dentro de você pulsa outra coisa que não aquilo que você julgava ser a sua vida inteira? Eis o dilema. Dentro dele um amor muito grande, transbordante, um desejo radiante de contágio, de aproximação, de abraçar o mundo inteiro e contar ao mundo a sua confissão. Para além da dor de perder sua mãe – e, talvez, justamente por conta dessa dor – ele compreende ser feito de algo mais, descobre ser feito de amor; uma aderência às coisas e aos seres do mundo. Um amor amoral, imenso, amor que ultrapassa o que pode e o que não pode. Ele descobre-se amante da vida, de tudo ao redor, num movimento intenso de querer a tudo, a todos, de só querer amar, sem motivo capaz de explicar tanto desejo. Era isso o que esteve preso esse tempo todo dentro de mim? É isso o que essa vida humana faz morrer, prende, enclausura? E é nesse momento, em algum ano entre 2024 ou 2025, que Yellow é preso numa penitenciária de segurança máxima. Ele é considerado estranho, para além da pele amarela, porque é amoroso ao extremo. Por isso é aprisionado numa penitenciária nova aos padrões da época. Já não importam os recursos tentados, de nada serve ter-se tornado advogado: ele está preso e ali ficará. A não ser que. A não ser que perceba, honestamente, que é chegada a hora de partir, a hora de concluir o seu destino. É hora de voltar a Marte. E ele volta. É madrugada na Terra, ele ultrapassa as barras de ferro de sua cela. Ele caminha até um espaço aberto, já fora da prisão. Ele não sabe, mas está descobrindo. Ele não é daqui, dizem as lágrimas que escorrem por seu rosto forte e franzino. Ele vai sumindo, no ar, vai virando ar mesmo, como num filme de ficção científica, ele é tudo aquilo que a ele se aproxima. E lá em cima, na imensa distância, ele chega em Marte, é um momento único, amplamente esperado. Ele de frente a uma grande e imensa multidão de marcianos, seres como ele, amarelos como ele. Ele então reconhece sua mãe. Ela, enfim, morrerá. Ele também, agora há de gerar um filho e morrer. Mas não. Ele tenta segurar o tempo. Ele não quer morrer, não porque se oponha ao governo marciano, mas porque descobriu algo na Terra que pode valer uma vida inteira. Ele tenta se explicar, os marcianos não compreendem. Os marcianos temem a raça humana, raça da guerra, do poder, da corrupção. Ele tenta novamente. É só o amor, ele diz a si mesmo, remexendo-se para ser entendido, ele afirma a si mesmo: o amor é capaz de dar um jeito nisso tudo, em tudo isso. A despeito de tudo, é só o amor que faz algum sentido. É só o amor.


E então, nós três – no encontro #3 – nos perguntamos sobre a imagem que queremos colocar diante do nosso espectador. Eis um homem branco, um advogado, um homem atarefado, correndo o dia-a-dia, com problemas comuns (sua mãe no hospital, recém-atropelada). Um homem que, num dia qualquer (ou, não tão qualquer assim), descobre trazer dentro de si – trancafiada – outra existência, outra potência existencial. Um marciano que foi tornado homem na tentativa de reter, controlar e vigiar, na tentativa de colonizar sua estranheza que, por extensão, é também sua força, sua beleza.

É como se perguntássemos aos nossos espectadores: quem é o estrangeiro que vive dentro de cada um? Quem é o estranho, o desfamiliar, a aberração, o abjeto, o outro que você mata por que não tem coragem de assumir que é você próprio? Perguntas para os próximo encontros.



[1] Esse trecho da história de Yellow foi escrito no roteiro cinematográfico “BASTARD” de Diogo Liberano.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Expansão

Importa a duração das horas, algumas, poucas, uma ou duas, duas ou quase três. Não contei, mas nisso fiquei, entretido nas revelações. Aquilo que havia escrito na postagem anterior ganhou contornos mais vastos. Comecei a traçar um processo criativo analógico a ser escrito por meio de duas tramas: a trama ficcional e a trama atual (ou real, ou mesmo biográfica). Nossa peça seria então a coexistência dessas tramas: uma trama única feita por duas outras tramas, simultâneas, enoveladas.

Para retomar: trama é o modo como as ações trabalham. Diz Eugenio Barba que trabalham as ações - tudo aquilo que age sobre a atenção, a compreensão, a emotividade e a sinestesia do espectador - por meio de dois tipos de trama: concatenação (ou encadeamento) e simultaneidade. Não é um ou outro, mas sempre os dois modos em dialética. Falar sobre tipos de trama só é possível se partimos da compreensão de que dramaturgia não é (apenas) palavra no papel, mas sim tudo aquilo que age sobre o espectador. Será, portanto, um processo colaborativo de composição da dramaturgia (posto seja ela também cênica, espacial etc.).

Abro já um questionamento sobre as nomenclaturas aqui lançadas: uso o termo trama ficcional e atual mas não de modo análogo às tramas do trabalho das ações (da dramaturgia). Poderia dizer, ao invés de trama ficcional, por exemplo, apenas ficção. Poderia chamar trama atual de atualidade. Talvez seja bom pensar nisso para não exaurir os termos e confundir o que não precisa ser confundido.




Ontem trabalhei bastante. Fiz duas listagem, uma para cada trama, listagens com informações, dados sobre (1) a fábula de vida desse personagem marciano e (2) dados acerca da vida do ator Márcio Machado (neste mundo de hoje, nesta atualidade). Ao fazer tais listas, duas questões se instauraram de modo nevrálgico:

1ª - Qual é a especificidade desse extraterrestre?
2ª - Como a mãe (alguma memória dela ou mesmo a ignorância dele sobre ela) aparece para o marciano?

Sobre a segunda questão: ela é importante porque esse marciano não sabe muito sobre a sua própria história. Penso que o percurso da peça será também um percurso (trágico) desse ser ganhando consciência de si, sobre quem ele é sem saber que sempre foi: um extraterrestre (retomar Nietzsche a a afirmação trágica da vida). Adiante especularei mais sobre isso.

Sobre a primeira questão: já havia especulado algo sobre a especificidade dele nesse blog. Numa postagem datada de 7 de dezembro de 2017 - Qual diferença ele possui? - escrevo o seguinte:
Para além da pele amarela, há algo nesse ser que extrapola a condição humana, que a assusta justamente por ser diferente. Há um saber, uma consciência sensível, uma consistência muito afetiva, estrangeira (que lembra Jesus Cristo) e que diz respeito unicamente ao modo pelo qual esse ser sente. Não é uma questão cultural, de criação, por exemplo. É uma questão fisiológica, interna, do corpo. Diz respeito a uma sensibilidade (uma filosofia prática).
Sobre essa capacidade/habilidade de YELLOW, eu poderia arriscar algumas hipóteses: acho que esse ser é menos eu e mais o outro. Ele é mais passagem, mais caminho do que ser centrado e individuado. Fiquei pensando qual diferença seria de fato ameaçadora à raça humana? Ora, uma existência que não se acha o centro do universo seria uma ameaça ao homem. Uma existência que não vê no "eu" a salvação do planeta, sem dúvida, é uma grande ameaça.
A sensibilidade de YELLOW é a de ser passagem, é a de ser caminho, para o outro, para outras narrativas; narrativas da alteridade. A sensibilidade dele - que é quase um super poder - é para o fora, não para si, não para o dentro apenas. É, desde já, uma crítica ao antropocentrismo. Ele tem a habilidade de ser frequentado pelas coisas mais do que apenas ser alguém. Ele, nesse sentido, vive a vida em tempo espiralado, em simultaneidade, junto ao eterno retorno.
Hoje, após mais de um ano desde essa postagem, desconfio dela integralmente. Não da honestidade dela, isso tinha, mas sinto-me utilizando palavras da vez, modismos da linguagem e da conceituação. Ser caminho, ser passagem, ser alteridade. Ora, por favor. Tudo um pouco excessivo, hoje observo. É preciso se lembrar de sempre ser rigoroso, implacavelmente rigoroso: qual é a especificidade do personagem Yellow? Eis que o capítulo de Cassiano Sydow Quilici - que mencionei na postagem anterior e logo em seguida finalmente li - me abriu um caminho promissor e que já vinha, por outras vias, se procriando em mim.

Ele diz respeito ao humor. A especificidade de Yellow é o seu humor - ou como afirma Martin Heidegger - sua abertura essencial, sua disposição, que é o traço fundante da sua presença. Ainda estou lendo o texto de Quilici como também vasculhando o tratado "Ser e Tempo" do Heidegger, mas já é algo muito mais afiado e concreto para mim do que dizer que esse personagem é passagem, é alteridade, é isso ou aquilo. Para o primeiro encontro, de amanhã, já levarei esse texto do Quilici impresso. Tenho a sensação que ele valoriza as intuições e desejos do Márcio (pelo humor, não propriamente esse humor filosófico que Quilici nos revela) e também os meus desejos criativos e investigativos.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Espaço Ficcional

Acabo de chegar de um encontro com o ator Márcio Machado. Um mês após a finalização do roteiro do curta-metragem (prólogo) de YELLOW BASTARD, nos encontramos para darmos continuidade e aprofundar o processo de criação da peça (com estreia agendada para junho de 2018 no Rio de Janeiro).

Para além das inúmeras anotações que fiz em meu caderno, destaco uma: a dimensão ficcional. É uma criação que precisa ser gastada na sua dimensão fabular (inventada e inventiva). As certezas, nesse momento da criação, morrem todas. É preciso se perguntar tudo novamente e, pouco a pouco, decidindo alguns aspectos dessa história.

Vamos contar uma história. Sim, uma história, outra história. Um extraterrestre que vive no planeta Terra de 1968 a 2018. Nesse percurso, entre humanos, ele vive o desafio de se tornar quem ele de fato é - um extraterrestre, marciano, pele amarela - e também a crueldade de ser alvo da intolerância humana. Conversamos muito sobre familiaridade e estranhamento, sobre identificação e estranheza/transformação, sobre Aristóteles e Bertolt Brecht.


Auschwitz: rede de campos de concentração no sul da Polônia.


Sobretudo, percebo: não é uma criação onde um ator vai falar um texto, performar a dramaturgia. É um trabalho de composição de um personagem enredado dentro de uma dimensão ficcional. Específica da fábula. Ou seja: onde ele está? Está preso? É refém de alguém ou algo? Ele fala para quem e a partir do quê?

Volto à importância que julgo ter a situação. A situação explode e apresenta o personagem e seu drama. O personagem não se mostra para o espectador, é o espectador quem o recebe a partir do drama em acontecimento, em situação. Ou seja: se ele está aprisionado, se começa a "peça" preso, numa cela "qualquer", é a partir desse contexto - dessa situação - que sua fala explode e o espectador pode então ler o drama, vê-lo acontecer.

Lembro-me dos campos de concentração. Lembro-me de Auschwitz. Lembro-me da inteligência humana a favor do extermínio humano. Lembro do vínculo entre as palavras DIFERENÇA e INTOLERÂNCIA. Há uma proporção indireta, me parece: quanto menos se é quem se é, maior a intolerância. Disse ao Márcio: primeiro conosco, por sabermos que somos algo que não aceitamos (por conta da moral, da tradição, da família e religião) e nos repudiamos por isso; na sequência, a intolerância que primeiro nasce contra si próprio, resvala ao outro, pois o outro não pode ser alegremente quem eu sou.

Eis o cerne, me parece. Por enquanto, eis um cerne.