O que sabemos sobre YB –
O encontro de hoje, terceiro
encontro desde que começamos 2019, foi extremamente revelador. Nele estavam
presentes eu (diretor e dramaturgo), Andrêas Gatto (diretor assistente) e
Márcio Machado (ator). O objetivo desse encontro, a partir de um planejamento feito
por mim, foi imaginar a narrativa desta criação em dois momentos (como se ela
acontecesse em 02 atos): um primeiro momento no planeta Terra e o momento
seguinte em Marte.
Levei impressa uma breve “cena”
em que o personagem Yellow Bastard, aprisionado numa cela no planeta Terra, faz
um pedido ao vigilante que o vigia. A seguir, transcrevo a cena já adulterada
pelo jogo que fizemos (o jogo do “desfigurar” que consistia em, sobre o papel impresso,
riscar o “excesso” de palavras do texto, desorientando a trama escrita e abrindo
outras possibilidades):
YELLOW se aproxima da grade frontal da
cela onde está preso. Posiciona, em frente à ela, uma cadeira. Senta-se, mira o longo corredor
cujo fim não se vê e fala ao
Sentinela que mora ao fim desse corredor.
Sugou
Chupou
Comeu
Mastigou as melhores histórias que tinha
Estou seco agora
É justo
Você precisava ouvir
Outras histórias
Não te deixam
Livro ou televisor
Celular computador
Nada disso aqui te
deixam
Te sinto
Por isso pediu
Que contasse histórias
Para viajar
Sem sair do lugar
Mas seco agora
É minha vez de pedir
Alguma coisa
Não suas histórias
Mas a sua
Total confiança
Aproximando o rosto da
grade.
Caro Sentinela,
Posso?
Pelos sorrisos abertos
Pelas lágrimas
Nos seus olhos
empoçadas
Uma retribuição
Por tudo isso
Apenas um
Este hoje
Pedido
Que conte
Minha história no depois
daqui
Você me pergunta
Partir para onde?
Quando, Amarelo?
E como você partiria?
Trancado nessa cela
Prisioneiro
Do Estado
Ora, ora, meu caro
O Estado
É uma invenção do
Estado
Posso partir
Sabes disso
Poderia sumir
Na hora que bem quisesse
Do jeito que inventasse
Em brevíssimo
Partirei, por isso
A urgência do meu pedido
Posso?
O Sentinela assente. YELLOW
o percebe e se ergue.
Você me
aceita
Aprendeu a me tolerar
Assente o
meu pedido
Sem falar
E da minha língua
Para a sua
Meu pedido passa
Sobre a sua língua
Ele agora pousa
E pensa sua cabeça
Pesada, ela coça
Se vou mesmo embora
Você se pergunta
Meu caro, Sentinela
Vou-me mesmo
Já estou quase lá fora
As grades da cela
atravessam o corpo de
YELLOW, que chega ao corredor intacto e liberto.
Hora exata esta
Estou nas coisas todas
Sou todas elas
Mais nelas do que comigo
mesmo
Estou do seu lado
Não se assuste, medo não
Iria de qualquer jeito
Poderia e posso
Nunca estive só
Lá e antes
Dentro e muito no fora
Estive nos cantos
todos
Você nem viu
Mas lá estava
Lá estou agora
Por isso
Um pedido
Que conte
Para aquelas
Aqueles que restarem
Depois de mim
Conte-os
Conte o que descobri
O que comigo se deu
Quando estive junto
E colado
E sugado
Comido, chupado e
mastigado
Conte
Lhe peço
Por tudo já te contado
Conte apenas
Isso
Exatamente isso
Sobre isso
Que vocês teimam em chamar
De amor.
A tela pela qual se
vigiam os prisioneiros em suas celas não consegue encontrar YELLOW. O Sentinela aperta um
botão de emergência e o som da sirene ecoa sozinho pelo espaço da prisão. O Sentinela cantarola qualquer
coisa, mas já não importa mais.
Acima, compartilhei a
desfiguração feita por mim. Porém, as outras desfigurações (de Andrêas e
Márcio) nos brindaram com outras descobertas. Eis um bom jogo para fazermos
outras vezes, desfigurar o texto para ir secando as palavras até chegar ao mais
essencial delas). Após tal jogo, pendurei na parede da sala de ensaio duas
tiras de papéis (uma com a marca “Terra” e outra com “Marte). Nesses papéis,
fomos escrevendo situações que teriam sido vividas por Yellow (em momentos
distintos de sua vida), naqueles espaços específicos.
Não descreverei a seguir o que
foi escrito nos papéis (tenho esse material aqui comigo), mas sim a conversa
que brotou entre eu e os meninos. Por onde começar? (Foi tanta coisa!). Talvez
eu pudesse escrever um breve texto (não explicando, mas) afirmando a coisa toda:
YELLOW
BASTARD apresenta a história de um marciano que não sabe que é marciano. Não
ainda. Ele chegou no planeta Terra em uma madrugada quente de novembro de 1974.
Logo ao chegar, aterrissou no colo de uma mulher com seus quase trinta anos. Ela
estava jogada sobre o terreno do lado de fora de sua casa, logo após ter sido
espancada por seu namorado e ter perdido o seu filho, ainda em gestação. No
momento em que Yellow é enviado à Terra, essa mulher acabou de enterrar o feto
dessa criança que não pôde nascer. Quando ela acorda, sobre a terra do quintal,
tem em seus braços um bicho estranho e amarelo, miúdo e sonoro. Talvez por
muita dor (ou sabe-se lá por qual motivo), ela recebe e aceita essa estranha
criatura e faz dela o seu primeiro e único filho, criando-o desde então. Ela
amamenta a criatura que, num percurso de quase cinquenta anos de vida na Terra,
vai ficando branca, com feições ainda mais humanas. Yellow aprende a linguagem
dos homens, estuda em escolas, presta o vestibular, se muda para uma cidade
maior, faz amigos e inimigos, sofre bullying quando e, ainda assim, se torna um
brilhante advogado. Em 2018, porém, sua mãe terráquea é atropelada no centro de
uma grande cidade[1].
No hospital, em seu leito de morte, “seu filho” a tenta socorrer, mas a
gravidade da saúde dela o coloca numa situação extremamente instável: ele entra
em contato com sensações ainda não vividas, especialmente a dor dilacerante que
é perder alguém que se ama. É ali, naquele hospital, onde o corpo do marciano –
que não sabia ser marciano – reage de modo inquestionável: irritado por ser
impedido de tirar sua mãe do hospital (para leva-la em direção à casa onde ele
julga ter nascido), subitamente sua pele começa a amarelar, como numa reação
química, ele bruscamente fica amarelo, para desespero de sua “mãe” e terror das
enfermeiras e médicos de plantão. Uma noite em uma vida inteira e agora ele
está amarelo, completamente amarelo. Ele arranca a mãe do hospital e a leva até
sua antiga casa, enterrando-a no mesmo solo onde, outrora, ele enterrou seu
filho biológico (que sequer chegou a nascer). Prestes a morrer, a mãe terráquea
tenta se desculpar por ter escondido de seu “filho” sua real origem (que nem mesmo
ela soube dizer qual era). Após ser enterrada por Yellow, num corte lancinante
e doloroso, ainda no terreno da casa de sua infância, jogado sobre a terra seca
e escura, ele é atravessado por um grito, um descontentamento profundo (que ele
ainda não sabe, mas vem de sua “mãe original”, o ser que o gerou, que ainda
está em Marte). É que em Marte não há isso de pai ou mãe, nem de homem ou
mulher. Em Marte, só o que há são seres – marcianos – que obrigatoriamente vão
gerar outro ser, apenas um outro ser. No momento em que um novo marciano é
gerado, a morte do ser que o gerou começa a sua contagem regressiva. No caso da
“mãe” de Yellow, o que aconteceu – pela primeira vez – foi justo um crime, uma
traição ou trapaça. Por não querer se ver longe de seu filho, por não querer
simplesmente abandoná-lo ao destino, ela o teve, ela o fez nascer e o escondeu
junto a si. No entanto, quando esse crime é descoberto, como punição, a mãe de
Yellow continua viva, porém, seu filho recém-nascido – o próprio Yellow – é enviado
para o planeta Terra, onde deverá permanecer ignorante e em penitência até o
momento em que estiver prestes a completar cerca de cinquenta anos (mais ou
menos a idade em que os marcianos geram suas crias). No dia em que enterra sua
mãe terráquea, talvez pela primeira vez, Yellow gasta um tempo olhando em direção
ao céu. O grito de sua mãe biológica talvez seja escutado por ele. Sua pele já
está amarela, a desconfiança em relação ao mundo e a tudo é imensa; mais que
tudo, ele sente. Não é apenas a pele, não apenas o corpo que, subitamente,
despertou. Há uma dor de antes, uma indagação persistente que ele não sabe dar
conta, posto nunca tenha estado junto a ela, ao menos não de maneira tão
evidente. Ele mira ao céu e se pergunta como o impossível, subitamente, se
torna possível. Durante quase cinquenta anos, na Terra, ele viveu uma vida
considerada normal, se tornou um grande advogado. Atualmente, trabalhava num
grande escritório de uma grande empresa. Tudo muito clichê, tudo muito grande,
tudo muito branco. Às sextas, ia ao happy
hour com os amigos do trabalho e, sentia, que progressivamente estava
começando a se apaixonar por alguém. Yellow se tornou um homem modelo do
sucesso, branco, advogado, bonito inclusive. Essa foi a vida que sua mãe terráquea
conseguiu que ele tivesse. Uma vida bela, sem dúvida, mas escondendo – sob tanta
maquiagem – quem ele realmente era e quem, inevitavelmente, um dia ele
descobriria ser. Tudo isso acontece assim, de súbito, no dia em que ela morre: esse
ser que foi escondido dentro dele próprio, finalmente, aparece. Aos poucos,
primeiro, aos poucos, mas no correr dos dias, o amarelo toma a pele por
completo, o corpo parece ser revirado e uma intensa e imensa disponibilidade
ocupa cada pedaço da atenção daquele homem já não tão homem assim. Ele se
pergunta, certa vez, mirando o rosto num espelho de banheiro: quem está trancado
aí dentro, hein? Quem está preso dentro de mim? Ele não sabe responder, mas
sente que a pergunta é o mais perto que ele pode chegar da vida. E é sentindo
tudo, de novo e renovadamente, que ele vai percebendo ser mais do que sempre
soube. Uma imensa disponibilidade o faz sentir as coisas ao redor, próximas a
ele ou não. Uma escuta muito calibrada o faz ouvir os passos dados por baratas
em ralos da grande cidade. As estrelas, o sol, o céu; tudo conversa com ele e
ele, com tudo, também conversa. Como é possível, ele se pergunta, de um dia a
outro perceber que dentro de você pulsa outra coisa que não aquilo que você
julgava ser a sua vida inteira? Eis o dilema. Dentro dele um amor muito grande,
transbordante, um desejo radiante de contágio, de aproximação, de abraçar o
mundo inteiro e contar ao mundo a sua confissão. Para além da dor de perder sua
mãe – e, talvez, justamente por conta dessa dor – ele compreende ser feito de
algo mais, descobre ser feito de amor; uma aderência às coisas e aos seres do
mundo. Um amor amoral, imenso, amor que ultrapassa o que pode e o que não pode.
Ele descobre-se amante da vida, de tudo ao redor, num movimento intenso de querer
a tudo, a todos, de só querer amar, sem motivo capaz de explicar tanto desejo.
Era isso o que esteve preso esse tempo todo dentro de mim? É isso o que essa
vida humana faz morrer, prende, enclausura? E é nesse momento, em algum ano entre
2024 ou 2025, que Yellow é preso numa penitenciária de segurança máxima. Ele é
considerado estranho, para além da pele amarela, porque é amoroso ao extremo.
Por isso é aprisionado numa penitenciária nova aos padrões da época. Já não
importam os recursos tentados, de nada serve ter-se tornado advogado: ele está
preso e ali ficará. A não ser que. A não ser que perceba, honestamente, que é
chegada a hora de partir, a hora de concluir o seu destino. É hora de voltar a
Marte. E ele volta. É madrugada na Terra, ele ultrapassa as barras de ferro de
sua cela. Ele caminha até um espaço aberto, já fora da prisão. Ele não sabe,
mas está descobrindo. Ele não é daqui, dizem as lágrimas que escorrem por seu
rosto forte e franzino. Ele vai sumindo, no ar, vai virando ar mesmo, como num
filme de ficção científica, ele é tudo aquilo que a ele se aproxima. E lá em
cima, na imensa distância, ele chega em Marte, é um momento único, amplamente
esperado. Ele de frente a uma grande e imensa multidão de marcianos, seres como
ele, amarelos como ele. Ele então reconhece sua mãe. Ela, enfim, morrerá. Ele
também, agora há de gerar um filho e morrer. Mas não. Ele tenta segurar o
tempo. Ele não quer morrer, não porque se oponha ao governo marciano, mas
porque descobriu algo na Terra que pode valer uma vida inteira. Ele tenta se
explicar, os marcianos não compreendem. Os marcianos temem a raça humana, raça
da guerra, do poder, da corrupção. Ele tenta novamente. É só o amor, ele diz a si
mesmo, remexendo-se para ser entendido, ele afirma a si mesmo: o amor é capaz
de dar um jeito nisso tudo, em tudo isso. A despeito de tudo, é só o amor que
faz algum sentido. É só o amor.
E então, nós três – no encontro
#3 – nos perguntamos sobre a imagem que queremos colocar diante do nosso
espectador. Eis um homem branco, um advogado, um homem atarefado, correndo o
dia-a-dia, com problemas comuns (sua mãe no hospital, recém-atropelada). Um
homem que, num dia qualquer (ou, não tão qualquer assim), descobre trazer
dentro de si – trancafiada – outra existência, outra potência existencial. Um marciano
que foi tornado homem na tentativa de reter, controlar e vigiar, na tentativa
de colonizar sua estranheza que, por extensão, é também sua força, sua beleza.
É como se perguntássemos aos
nossos espectadores: quem é o estrangeiro que vive dentro de cada um? Quem é o
estranho, o desfamiliar, a aberração, o abjeto, o outro que você mata por que
não tem coragem de assumir que é você próprio? Perguntas para os próximo
encontros.
[1] Esse trecho da história de Yellow foi
escrito no roteiro cinematográfico “BASTARD” de Diogo Liberano.
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