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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Encontro em companhia

No encontro de ontem - nosso encontro de número 16 - fizemos uma partilha de dois processos de criação do Inominável que estão acontecendo simultaneamente. Um deles é uma criação (ainda sem título) com performance de Laura Nielsen e o outro é YELLOW BASTARD. Na criação de Laura, a direção é da inominável Natássia Vello - com assistência de Clarissa Menezes - busca, a partir de um texto-provocação que escrevi em dezembro, reencontrar as ancestrais (reais e inventadas) da atriz.

Na semana passada, estive num dos ensaios das meninas e, com espanto e alegria, percebi que o processo delas conversa muito com o nosso. Sugeri, então, que dividíssemos a sala de ensaio para que ambas equipes pudessem ver o que cada criação está buscando. Por isso, tento agora destacar alguns pontos que me parecem interessantes de se destacar:




ESPAÇOS E TEMPOS

Ambas criações possuem relações fundantes com as dimensões espaciais e temporais. Num projeto, os espaços e tempos se sobrepõem e misturam de maneira evidente, sem nenhuma tentativa de organização linear e causal. Este é YELLOW (pelo menos, até o presente momento). No outro, há um tempo - uma hora inerte, a do encontro de Laura com suas ancestrais e também com o público que estará na sala de apresentação - e um espaço (a sala de uma casa); no entanto, pelo jogo da criação, o tempo presente é pretexto para que outros tempos possam surgir e ser (re)visitados.

Em outras palavras, o que essas criações operam é o jogo teatral, poderia dizer, por excelência. O tempo presente - o tempo da ação teatral - é um espaço-tempo disponível ao movimento, aos trânsitos e deslocamentos (espaciais e temporais). Firma-se o pacto para, no caminho, desnortear tudo, abrindo novas relações de velocidade e lentidão - de afeto - entre a cena e o público que a vê.

BIOGRAFIA E FICÇÃO

As duas criações também fazem um uso absolutamente profano das biografias da atriz e do ator. Seu texto biográfico aparece sem a necessidade de se autodeclarar biográfico. A malha biográfica serve como matéria para a composição da dramaturgia final que é, propriamente, a cena (onde serão reunidos os espectadores, os performers, o texto, os gestos e as ações, enfim, o acontecimento artístico em si). Quero dizer que a biografia perde um valor maior (no sentido de que perde a sua aura, a sua possível inércia, a mesura que faríamos normalmente a ela) e vira algum tipo de matéria que pode ser usada e deslocada, destruída e refeita.

Nesse sentido, a ficção assume aquilo que tanto friso a partir de Jacques Rancière:

Ficção não é criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas e entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. Esse trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 64-65.




FEMINISMOS E ANTROPOCENTRISMOS

Impossível não perceber que, em ambas criações, o homem gênero masculino é posto em questão: seja porque a mulher salta e se afirma na sua potência presencial e ancestral; seja porque um homem branco vencedor, subitamente, descobre que dentro dele vive outro (um alienígena). De certa forma, a partir de Virginie Despentes e sua TEORIA KING KONG, percebo que há um esforço delicado não em maltratar a figura homem gênero masculino, mas, ao contrário, um esforço - delicado - em tornar perceptível que a lógica binária dos gêneros já não dá conta da estranheza que sempre nos constituiu e que agora, por motivos inúmeros, parece querer saltar, aparecer, se lançar e se fincar em nossas existências cotidianas.

O TEXTO TEATRAL COMO MATÉRIA, MATERIAL, MATERIALIDADE

Por fim - escrevo para Laura Nielsen, Márcio Machado e também para o diretor Andrêas Gatto e a diretora Natássia Vello:
Eu, como dramaturgo, ainda mais como artista integrante de uma companhia teatral, tenho encarado o exercício da dramaturgia como um meio do caminho. O que isso quer dizer? Quer dizer que o texto escrito, impresso e entregue, antes de ser uma chegada, é assumidamente um caminho, um convite à experimentação. Penso, assim, que não é possível ler um texto buscando nele a realização final, as chegadas, os contornos precisos da cena ou da fala do ator e da atriz. Destituir o texto do seu trono não é fazer pouco caso dele. Antes, é valoriza-lo ainda mais, pois não mais o tratamos como um manual, um projeto de verdade (fascista, portanto). Destituir o texto de seu trono é reconhecer que as autorias e autoridades (o homem, o autor, o texto, a obra fechada) estão morrendo e precisam morrer. Perde-se o contorno (prisão) do texto para compreender as palavras como matéria e, enquanto tal, como potências do por vir. A palavra pode. A palavra pode anunciar outros textos, outros sentidos, para além dos mais imediatos. A palavra volta a ser matéria, antes de ser sentido. Para que isso aconteça, é preciso usa-las não como quem chegou a algum lugar, mas como quem está abrindo lugares e mais lugares que, em sala de trabalho, serão contornados, compreendidos e intencionados. Se a palavra volta a ser matéria, logo, o nosso trabalho volta a ser artesanal, volta a ser um longo trabalho de composição, montagem e modelagem.
Que delícia tudo isso.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Encontros #1 e #2

Nossos primeiros encontros em sala de ensaio aconteceram na quinta e na sexta-feira, dias 10 e 11 de janeiro de 2019, de 09h às 13h, na Sala de Ensaios do CCBB Rio de Janeiro. No primeiro, estiveram eu, Márcio Machado, Clarissa Menezes, Andrêas Gatto e Laura Nielsen. No segundo, eu, Márcio e Clarissa.

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Abertura e especulação: sobre Yellow Bastard
De alguma forma, foram dois encontros voltados para um mesmo propósito. Partindo de um resumo bastante simples acerca da história dessa nova criação, abrimos - em roda - perguntas, imagens, afirmações, dúvidas que pudessem dinamitar ainda mais os sentidos que, porventura, já estão por demais fixos. Assim, como era esperado por mim, coisas novas se abriram e outras se tornaram menores, menos importantes.
Como saldo desses encontros, deparamo-nos com o mais importante desafio: trata-se de uma criação não no sentido de que é uma nova peça da companhia, mas no sentido de que a fábula sobre Yellow Bastard é uma invenção por si só, diz respeito a um extraterrestre no planeta Terra numa trama sobre maternidade, traição, intolerância etc. Ou seja: não há como operarmos criativamente como se fosse apenas a criação de uma peça. É a criação, sobretudo, de um universo, uma linguagem, um modo de usar e manusear a linguagem (o corpo, a língua falada, os gestos e ações, codificações inúmeras...).

A importância da poesia
Do primeiro ao segundo encontro, percebi que a importância então residia primordialmente na compreensão de que estamos criando um poema. Eu, dramaturgo, escrevo um longo poema. E é isso. Como a cena teatral vai interpretá-lo, como vai coloca-lo no palco, isso já são questões ultrapassadas. A cena não precisa interpretar, a cena não precisa colocar nada. A material textual a ser composta não será transcrita em cena, mas estimulará o aparecimento da cena, estimulará a composição de atmosferas, ações, gestos e sensações que, por vezes, vão muito além do texto.
Assim, levei alguns poemas para que lêssemos. Levei breves falas sobre a linguagem da poesia, sobre as funções da linguagem, para que começássemos percebendo o nosso próprio corpo e a sua viciada maneira de explicar, reduzir tudo ao fechamento de um sentido capaz de explicar toda e qualquer coisa.

Contar a história da peça
No segundo encontro, fizemos esse jogo. Havíamos, no primeiro encontro, contado a história da peça. (Obviamente, descobrimos novas dobras, como por exemplo: Yellow está preso na Terra, mas se liberta e volta a Marte; quando chega em Marte, é aos marcianos que ele conta tudo aquilo que vivenciou aqui. Márcio, no segundo encontro, insiste que algo foi apreendido aqui e que Yellow não tem a mínima pretensão de abandonar isso ao ir embora da Terra). Ou seja: tínhamos muitas especulações sobre a fábula, bem como um material escrito - primeiro - que eu havia entregue impresso.

Ele quer reencontrar
a sua mãe
assim que ele chegar
no planeta amarelo
ele reencontra
a sua mãe
no meio de todos
os marcianos
amarelos
ele
reencontra
a sua mãe
ele sabe
ser mais
de uma coisa
poeira
mil
baratinhas

O jogo consistia em assumir uma posição no espaço da sala e contar sobre o que é a peça, contar a história de Yellow Bastard. Estávamos eu, Clarissa e Márcio no segundo encontro. Destaco algumas revelações que tivemos juntos e reitero o motivo que nos fez acessar tais revelações: estávamos jogando, de modo profano. Não tínhamos obrigação de fazer nada estipulado de antemão. Mesmo que eu tivesse dado objetivos ao jogo, eles foram se perdendo e anunciando novos e outros lugares. Em outras palavras, já em resposta a uma possível e excessiva mentatividade que diagnostiquei no primeiro encontro, estávamos "apenas" nos divertindo. E isso abriu os seguintes novos lugares para a criação:

- um grito
- a mão cobrindo a boca
- um riso preso
- uma necessidade constante de retornar do início
- pausas, muito ar
- voz trêmula
- excessiva gesticulação das mãos
- ano 1964
- descrições precisas ("tem muito amarelo...")
- afirmações (como um narrador onisciente: "ele sabe que voltando [a Marte] ele vai morrer. Ele não quer perder o que aconteceu aqui [na Terra]. Ele quer se dividir, se expandir"
- amor intolerância companhia brasil branco cor amarelo intolerância amor companhia
- "ele sabe ser mais de uma coisa: poeira, mil baratinhas..."
- o negativo do amarelo, o azul, muito azul
- um portal preto
- uma panela com pó de café e uma pena, alguma purpurina, "landscape" de Marte
- um pé atrás
- um telefone para Yellow
- falar tudo em inglês
- conversar com o futuro
- medo e amor, tudo ao mesmo tempo
um grito silenciado etc.

 A panela. A superfície de Marte (dentro da panela).


Uma proposta para janeiro de 2019 -
E então faço uma proposta no segundo encontro (ciente de que nosso cronograma ainda é instável, se montando a cada semana): sugiro que até fim de janeiro, a gente consiga montar a peça, fazer uma montagem meio "afoita" no sentido de passar pela história, pelos capítulos dela, passar pelas situações, profanar os modos de fazer e contar a história. Ainda que não seja uma montagem do espetáculo, antes disso, é a montagem da narrativa, a composição da fala.
Após essa montagem, o meu propósito é justamente trabalhar sobre o material com um empenho de DESFIGURAÇÃO do que foi criado. Desfigurar no sentido de apagar traços de literalidade, de moralidade e senso comum; no sentido de procurar e calibrar, de compor a estranheza natural desse extraterrestre (seu modo específico de ler, interpretar e escrever o mundo).