Blog do processo de criação de Yellow Bastard, peça teatral da companhia carioca Teatro Inominável
Dramaturgia de Diogo Liberano, direção de Andrêas Gatto e Liberano, performance de Márcio Machado e produção de Clarissa Menezes.
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segunda-feira, 28 de janeiro de 2019
Mudança de Direção
E algo mais, essencialmente, uma mudança de direção. Compreendi que eu deveria convidar o outro integrante da companhia, até então creditado como diretor assistente, para dirigir YELLOW BASTARD junto a mim. Assim, a partir de agora a direção do espetáculo é de Andrêas Gatto e Diogo Liberano porque é assim que estamos criando: juntos ao Márcio, por meio de falas simultâneas e uma escuta cada vez mais afiada.
No último fim de semana, fizemos uma breve e longa reunião aqui em casa para entender os caminhos do processo, para afirmarmos - junto ao Márcio - escolhas um pouco mais precisas e que possam tornar o processo - para o ator - menos especulativo e um pouco mais estruturado. Compreendemos assim que temos alguns procedimentos a serem repetidos (com variações, obviamente) no decorrer dos próximos encontros:
- preparação (cuidado do corpo)
- leitura e análise do texto
- composição
- improvisação
- psicofísica e atmosfera
Em breve, gastarei um tempo no blog resumindo os encontros ainda não postados. Mas fato é que a descoberta do romance mudou tudo. Ao escrever essa narrativa (longa) num formato (tradicionalmente reconhecido como) romance, eu me livro de ter que escrever para a cena e para o ator e dou a todos nós um universo muito mais complexo e intrigante do que somente indicações de cena. É uma intensificação, sem dúvida, do que venho pesquisando como dramaturgo.
sábado, 19 de janeiro de 2019
Da situação como concentração de movimento
Recorro ao dicionário e descubro que a palavra "situação", substantivo feminino, possui várias acepções possíveis. Cito algumas: 1) ato ou efeito de estar situado; 2) lugar, localidade; 3) condição, caso; e 4) o estado dos negócios, combinação de circunstâncias. Pois bem: situação seria algo como estar situado numa localidade (ou condição) específica. No caso de uma peça de teatro, provavelmente (assim estamos acostumados), tal especificidade diz respeito a uma conjuntura especial, única, aquela que acontece ali no aqui-agora da performance teatral.
Por que tenho pensando tanto em situação como esse catalisador teatral? Ora, parece-me óbvio, mas, desde Sinfonia Sonho (2011), descubro a situação como um modo de revelar o drama. É como se ele estivesse aprisionado nas ideias e imagens, sinopses e conflitos da criação, mas precisasse de um modo específico para vir a ser. Então, quando eu coloco o drama em uma situação específica - e, por isso, especial e intencional (artificial e artística) - ele me revela aquilo que eu nem sabia, mas que mora dentro da coisa toda, que - de um jeito ou de outro - anima aqueles seres a aparecer.
Vou à morfologia das expressões que compõem a palavra "situação". São duas: "situar" + "ção". "Situar" é um verbo que diz respeito a pôr em determinado sítio, colocar. Como sinônimo, podemos dizer que situar é também enxergar-se. Já "ção" - enquanto um sufixo - é uma terminação usada na formação de substantivos derivados de verbos que trazem em si a ideia de ação, de processo. Esse sufixo invoca à necessidade de um agente causador dessa ação.
Muita coisa. Tento inventar algo a partir disso: situar é enxergar a si mesmo num sítio onde se foi colocado ou no qual determinado alguém se colocou. No entanto, este sítio - esta situação - constitui-se como um movimento, um acontecimento: algo em processo. Assim, a situação - tal como a vejo agora - denota uma transformação, um percurso. Lembro-me de Sinfonia (e naquela época isso me era tão intuitivo): na primeira cena, uma família está num carro, numa viagem de mudança para outra cidade. Estão cansados, quase concluindo uma longa viagem: as crianças estão já amuadas com o longo percurso, querem chegar e há as expectativas para o dia seguinte, com a casa nova etc.. Ou seja: há um presente e um futuro premente. Na mesma situação, há o antes, o instante daquele agora e uma antecipação ligeira do que virá. A situação é o movimento concentrado.
A situação é a concentração do movimento. Por isso, quando penso em situações para Yellow, penso em contextos específicos que não podem ser quaisquer: precisam, antes, dizer minimamente sobre um antes, assegurar um instante presente e premeditar aquilo que virá. Por isso, pergunto, em quais situações colocar Yellow? Talvez em situações cujos títulos sejam terminados em "ção". Risos. Atualizo, a seguir, os nove momentos, as nove situações que tenho listadas para a composição do percurso dessa dramaturgia:
CRUCIFICAÇÃO - Yellow gera sua cria, em Marte, e é crucificado.
DESCONTINUAÇÃO - Yellow contamina Marte com o amor terráqueo.
INFERTILIZAÇÃO - Yellow assimila a lógica reprodutiva de Marte.
INSIGNIFICAÇÃO - Yellow é bem sucedido em mais uma defesa.
INTERVENÇÃO - Yellow em mais uma sessão de terapia.
MEMORAÇÃO - Yellow enterra a sua mãe terráquea.
OBSERVAÇÃO - Yellow abre os olhos e está preso numa cela.
ORIGINAÇÃO - Yellow se reencontra com o ser que o originou.
TONAÇÃO - Yellow retorna a Marte, após quase cinquenta anos.
CRUCIFICAÇÃO - Martírio
DESCONTINUAÇÃO - Amor
INFERTILIZAÇÃO - Estado
INSIGNIFICAÇÃO - Ignorância
INTERVENÇÃO - Terapia
MEMORAÇÃO - Mãe
OBSERVAÇÃO - Cela
ORIGINAÇÃO - Origem
TONAÇÃO - Regresso
Interessante experimentação a situação do amor, o amor enquanto situação. A situação da cela, a cela enquanto uma situação. A situação do estado, o estado enquanto uma situação. A situação da ignorância, da mãe, do martírio, a situação da origem e do regresso, a situação da terapia. Assim, eis as situações - em ordem alfabética - que a dramaturgia pretende desdobrar:
AMORCELAESTADOIGNORÂNCIAMÃEMARTÍRIOORIGEMREGRESSOTERAPIA
sexta-feira, 18 de janeiro de 2019
Yellow é um desculpante?
Os desculpantes
[...]
Se sentir ou não se sentir culpado. Acho que tudo depende disso. A vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas como essa luta acontece numa sociedade mais ou menos civilizada? As pessoas não podem se atirar umas sobre as outras sempre que se encontram. Em vez disso, tentam jogar no outro o constrangimento da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá aquele que reconhecer sua culpa. Você vai pela rua, mergulhado em pensamentos. Em sua direção vem uma moça, como se estivesse sozinha no mundo, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita, indo direto em frente. Vocês se esbarram. Eis o momento da verdade. Quem vai insultar o outro, e quem vai se desculpar? É uma situação-modelo: na realidade, cada um dos dois é ao mesmo tempo o que sofreu o esbarrão e o que esbarrou. E, no entanto, há os que se consideram, imediatamente, espontaneamente, os que esbarraram, portanto culpados. E há os outros, que se vêem sempre, imediatamente, espontaneamente, como os que sofreram o esbarrão, portanto no seu direito de acusar o outro e de fazer com que este seja punido. Você, numa situação como essa, você se desculparia ou acusaria?
[...]
A festa da insignificância – Milan Kundera
Encontro #4
- a questão das idades em Marte, quando um ser gera outro, quantos anos geralmente dura uma existência marciana etc.;
- percorremos a vida de Yellow desde sua infância: foi amamentado (e isso contribuiu para a coloração de sua pele ir ficando branca no correr dos anos); não viu muitos espelhos (logo, não tomou compreensão de si e muito menos investiu demasiada importância na noção de indivíduo); suas festas de aniversário, feitas pela mãe terráquea, sempre foram muito amarelas, dando a ele alguma sensação de pertencimento ao mundo; na adolescência, respondia aos bullyings com leveza e ingenuidade e, como que por distração, sobreviveu a todos eles; adulto, tornou-se advogado de defesa, especializado em causas relacionadas aos direitos humanos; após sua formação, foi compreendendo ser preciso atuar num drama social, cimentando um pouco a sua bondade para dar lugar a um homem bem-sucedido e capaz de sobreviver na selva da cidade;
- o aspecto crístico (de Cristo) é o seguinte: sua bondade, nutrida pela mãe terráquea, sempre foi rebatida (fosse nos bullyings vividos na adolescência ou nas dificuldades da vida adulta e profissional), porém, Yellow sempre respondeu a tudo de modo a se desculpar, nunca sofrendo os problemas, mas sempre tentando compreende-los a fim de melhorar a si mesmo e a situação. Porém, em analogia ao percurso de Jesus, podemos pensar: sendo esse ser libertário, confiante e praticante do amor independente das dificuldades, Yellow seria prontamente crucificado, seria morto. A questão então é: ele, progressivamente, vai cimentando essa bondade em si mesmo e se tornando um homem duro, não propriamente violento ou rude, mas com um brilho mais apagado. Quando tudo é revirado e ele volta a Marte, aí sim este homem escondido dentre dele, sua versão crística, finalmente precisa aparecer, pois em Marte a violência é muito maior e o amor, por extensão, também precisa ser muito mais destemido; para concluir seu percurso, poderíamos dizer que o Yellow Bastard que se faz surgir na crise de meia idade desse "homem" nada mais é do que o retorno à própria infância;
- três questões fazem o amarelo de sua pele (re)aparecer: 1) a morte da mãe terráquea; 2) a revelação dita por ela, antes de morrer, de que ele não veio dela, de que ele não veio branco; e 3) a conexão abrupta e inexplicável com algo muito distante e intenso (o ser que o gerou e que está, a sua espera, em Marte). Pode-se dizer que a pele amarelar nada mais é do que um intenso processo de alta, altíssima exposição;
- três lutas se abrem a partir dessa virada em sua vida, em sua existência, quase ao completar cinquenta anos: 1) a luta contra a situação de ser alguém que subitamente se tornou amarelo; 2) a luta para compreender, para entender toda essa situação; e 3) a luta com essa espécie de chamado que há fora de si, um chamado de Marte (ele ainda não compreende);
- sobre Marte ser outro planeta a partir da afirmação terráquea: "se esse é o mundo que temos, eu devo então ter nascido noutro planeta". Em outras palavras: Marte, em nossa criação, é um planeta despótico (tal como a Terra está se tornando) e a Terra, onde há o amor, é uma chave capaz de modificar as dinâmicas em Marte.
Um dia antes desse encontro, enviei para uma amiga advogada (Tatiana Alvim) um áudio, pedindo a ela que me dissesse um pouco sobre a sua vida, sua rotina como advogada. Neste quarto encontro, eu e Márcio ouvimos aos seus áudios e vários aspectos sobre ser advogado nos chamaram a atenção:
- a imposição de uma indumentária aos advogados;
- algumas tarefas extremamente burocráticas como "alimentar o sistema";
- tarefas "interessantes" como pegar uma demanda, estudar a causa, encontrar brechas na lei para a defesa de um cliente, enfim, inventar uma história para realizar a defesa (algo, a propósito, muito presente em qualquer filme com advogados e defesas diversas);
- NESSE PONTO, INVESTINDO NAS ANALOGIAS QUE VENHO PERSEGUINDO, DESTACO >>> o advogado é também um contador de histórias <<< ELE ENTENDE A SITUAÇÃO, MONTA NO PAPEL A SUA NARRATIVA E FAZ A SUA DEFESA, A SUA PERFORMANCE;
- também sofre o drama da consciência, tendo que ser (defender) aquilo que você não é (não acredita);
- a boa sensação de defender algo que o seu senso de justiça defenderia;
- e as relações de trabalho, os encontros e amizades que acabam sendo criados (minha amiga Tat descreve um gesto feito por uma funcionária com a qual ela não se dava muito bem, um gesto de profundo cuidado e bondade).
Por fim, compartilho a seguir algumas imagens de uma história em quadrinhos que o Márcio levou como referência, ASTERIOS POLYP, de David Mazzucchelli:
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
Encontro #3
sábado, 12 de janeiro de 2019
Encontros #1 e #2
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Abertura e especulação: sobre Yellow Bastard
De alguma forma, foram dois encontros voltados para um mesmo propósito. Partindo de um resumo bastante simples acerca da história dessa nova criação, abrimos - em roda - perguntas, imagens, afirmações, dúvidas que pudessem dinamitar ainda mais os sentidos que, porventura, já estão por demais fixos. Assim, como era esperado por mim, coisas novas se abriram e outras se tornaram menores, menos importantes.
Como saldo desses encontros, deparamo-nos com o mais importante desafio: trata-se de uma criação não no sentido de que é uma nova peça da companhia, mas no sentido de que a fábula sobre Yellow Bastard é uma invenção por si só, diz respeito a um extraterrestre no planeta Terra numa trama sobre maternidade, traição, intolerância etc. Ou seja: não há como operarmos criativamente como se fosse apenas a criação de uma peça. É a criação, sobretudo, de um universo, uma linguagem, um modo de usar e manusear a linguagem (o corpo, a língua falada, os gestos e ações, codificações inúmeras...).
A importância da poesia
Do primeiro ao segundo encontro, percebi que a importância então residia primordialmente na compreensão de que estamos criando um poema. Eu, dramaturgo, escrevo um longo poema. E é isso. Como a cena teatral vai interpretá-lo, como vai coloca-lo no palco, isso já são questões ultrapassadas. A cena não precisa interpretar, a cena não precisa colocar nada. A material textual a ser composta não será transcrita em cena, mas estimulará o aparecimento da cena, estimulará a composição de atmosferas, ações, gestos e sensações que, por vezes, vão muito além do texto.
Assim, levei alguns poemas para que lêssemos. Levei breves falas sobre a linguagem da poesia, sobre as funções da linguagem, para que começássemos percebendo o nosso próprio corpo e a sua viciada maneira de explicar, reduzir tudo ao fechamento de um sentido capaz de explicar toda e qualquer coisa.
Contar a história da peça
No segundo encontro, fizemos esse jogo. Havíamos, no primeiro encontro, contado a história da peça. (Obviamente, descobrimos novas dobras, como por exemplo: Yellow está preso na Terra, mas se liberta e volta a Marte; quando chega em Marte, é aos marcianos que ele conta tudo aquilo que vivenciou aqui. Márcio, no segundo encontro, insiste que algo foi apreendido aqui e que Yellow não tem a mínima pretensão de abandonar isso ao ir embora da Terra). Ou seja: tínhamos muitas especulações sobre a fábula, bem como um material escrito - primeiro - que eu havia entregue impresso.
Ele quer reencontrar
a sua mãe
assim que ele chegar
no planeta amarelo
ele reencontra
a sua mãe
no meio de todos
os marcianos
amarelos
ele
reencontra
a sua mãe
ele sabe
ser mais
de uma coisa
poeira
mil
baratinhas
O jogo consistia em assumir uma posição no espaço da sala e contar sobre o que é a peça, contar a história de Yellow Bastard. Estávamos eu, Clarissa e Márcio no segundo encontro. Destaco algumas revelações que tivemos juntos e reitero o motivo que nos fez acessar tais revelações: estávamos jogando, de modo profano. Não tínhamos obrigação de fazer nada estipulado de antemão. Mesmo que eu tivesse dado objetivos ao jogo, eles foram se perdendo e anunciando novos e outros lugares. Em outras palavras, já em resposta a uma possível e excessiva mentatividade que diagnostiquei no primeiro encontro, estávamos "apenas" nos divertindo. E isso abriu os seguintes novos lugares para a criação:
- um grito
- a mão cobrindo a boca
- um riso preso
- uma necessidade constante de retornar do início
- pausas, muito ar
- voz trêmula
- excessiva gesticulação das mãos
- ano 1964
- descrições precisas ("tem muito amarelo...")
- afirmações (como um narrador onisciente: "ele sabe que voltando [a Marte] ele vai morrer. Ele não quer perder o que aconteceu aqui [na Terra]. Ele quer se dividir, se expandir"
- amor intolerância companhia brasil branco cor amarelo intolerância amor companhia
- "ele sabe ser mais de uma coisa: poeira, mil baratinhas..."
- o negativo do amarelo, o azul, muito azul
- um portal preto
- uma panela com pó de café e uma pena, alguma purpurina, "landscape" de Marte
- um pé atrás
- um telefone para Yellow
- falar tudo em inglês
- conversar com o futuro
- medo e amor, tudo ao mesmo tempo
- um grito silenciado etc.
Uma proposta para janeiro de 2019 -
E então faço uma proposta no segundo encontro (ciente de que nosso cronograma ainda é instável, se montando a cada semana): sugiro que até fim de janeiro, a gente consiga montar a peça, fazer uma montagem meio "afoita" no sentido de passar pela história, pelos capítulos dela, passar pelas situações, profanar os modos de fazer e contar a história. Ainda que não seja uma montagem do espetáculo, antes disso, é a montagem da narrativa, a composição da fala.
Após essa montagem, o meu propósito é justamente trabalhar sobre o material com um empenho de DESFIGURAÇÃO do que foi criado. Desfigurar no sentido de apagar traços de literalidade, de moralidade e senso comum; no sentido de procurar e calibrar, de compor a estranheza natural desse extraterrestre (seu modo específico de ler, interpretar e escrever o mundo).
"O menino experimental" de Murilo Mendes (1901-1975)
O menino experimental come as nádegas da avó e atira os ossos ao cachorro.
O menino experimental futuro inquisidor devora o livro e soletra o serrote.
O menino experimental não anda nas nuvens. Sabe escolher seus objetos. Adora a corda, o revólver, a tesoura, o martelo, o serrote, a torquês. Dança com eles. Conversa-os.
O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros.
O menino experimental, declarando superado o manual de 1962, corrige o professor de fenomenologia.
O menino experimental confessa-se ateu e à toa.
O menino experimental é desmamado no primeiro dia. Despreza Rômulo e Remo. Acha a loba uma galinha. No oco do pré natal gritava: “Champanha, mamãe! Depressa!”.
O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles. Expulsa-o da sua zona, com a roupa do corpo e amordaçado.
O menino experimental repele as propostas da prima de dezoito anos, chamando-a de bisavó.
O menino experimental, escondendo os pincéis do pintor, e trancando-o no vaso sanitário, obriga-o a fundar a pop art, única saída do impasse.
O menino experimental ensina a vamp a amar. Dorme com o radar debaixo da cama.
O menino experimental, dos animais só admite o tigre e o piloto de bombardeiro. Deixa o cão mesmo feroz e o piloto civil às pulgas.
O menino experimental benze o relâmpago.
O menino experimental antefilma o acontecimento agressivo, o Apocalipse, fato do dia.
O menino experimental festeja seu terceiro aniversário convidando Jean Genet e Sofia Loren para jantar. Espetados na mesa três punhais acesos.
O menino experimental despede a televisão, “brinquedo para analfabetos, surdos, mudos, doentes, antinietzsches, padres podres e croulants”.
O menino experimental atira uma granada em forma de falo na mãe de Cristovão Colombo, sepultando as Américas.
Publicado originalmente em Poliedro − Roma, 1965/1966.
"Canção para Guitarra" de Andréi Biéli (1880-1934)
Eu
Estou nas palavras
Tão morbidamente
Mudo:
Minhas sentenças são
Máscaras.
E –
Falo
A vós todos –
– Falo
Fábulas, –
– Porque –
Assim me foi designado,
A razão –
Não a entendo;-
– Porque –
Há tempos tudo se foi no escuro,
Porque – tudo é igual:
Quer eu
Saiba ou não saiba.
Porque só há tédio em toda parte.
Porque a fábula é de esmeralda,
Onde –
Tudo é outro.
Porque há esta avidez dos borrifos
Do prazer;
Porque a difícil
Existência
Para todos –
– Tem um só desenlace.
Porque –
– Em suma,-
– Para que
Este inferno?
Porque –
– Para todos
Há um só fim.
E me rompe este riso.
Do
Destino
De todos –
– E –
– De
Mim.
Tradução de Augusto de Campos
quarta-feira, 9 de janeiro de 2019
Expansão
Para retomar: trama é o modo como as ações trabalham. Diz Eugenio Barba que trabalham as ações - tudo aquilo que age sobre a atenção, a compreensão, a emotividade e a sinestesia do espectador - por meio de dois tipos de trama: concatenação (ou encadeamento) e simultaneidade. Não é um ou outro, mas sempre os dois modos em dialética. Falar sobre tipos de trama só é possível se partimos da compreensão de que dramaturgia não é (apenas) palavra no papel, mas sim tudo aquilo que age sobre o espectador. Será, portanto, um processo colaborativo de composição da dramaturgia (posto seja ela também cênica, espacial etc.).
Abro já um questionamento sobre as nomenclaturas aqui lançadas: uso o termo trama ficcional e atual mas não de modo análogo às tramas do trabalho das ações (da dramaturgia). Poderia dizer, ao invés de trama ficcional, por exemplo, apenas ficção. Poderia chamar trama atual de atualidade. Talvez seja bom pensar nisso para não exaurir os termos e confundir o que não precisa ser confundido.
Ontem trabalhei bastante. Fiz duas listagem, uma para cada trama, listagens com informações, dados sobre (1) a fábula de vida desse personagem marciano e (2) dados acerca da vida do ator Márcio Machado (neste mundo de hoje, nesta atualidade). Ao fazer tais listas, duas questões se instauraram de modo nevrálgico:
1ª - Qual é a especificidade desse extraterrestre?
2ª - Como a mãe (alguma memória dela ou mesmo a ignorância dele sobre ela) aparece para o marciano?
Sobre a segunda questão: ela é importante porque esse marciano não sabe muito sobre a sua própria história. Penso que o percurso da peça será também um percurso (trágico) desse ser ganhando consciência de si, sobre quem ele é sem saber que sempre foi: um extraterrestre (retomar Nietzsche a a afirmação trágica da vida). Adiante especularei mais sobre isso.
Sobre a primeira questão: já havia especulado algo sobre a especificidade dele nesse blog. Numa postagem datada de 7 de dezembro de 2017 - Qual diferença ele possui? - escrevo o seguinte:
Para além da pele amarela, há algo nesse ser que extrapola a condição humana, que a assusta justamente por ser diferente. Há um saber, uma consciência sensível, uma consistência muito afetiva, estrangeira (que lembra Jesus Cristo) e que diz respeito unicamente ao modo pelo qual esse ser sente. Não é uma questão cultural, de criação, por exemplo. É uma questão fisiológica, interna, do corpo. Diz respeito a uma sensibilidade (uma filosofia prática).
Sobre essa capacidade/habilidade de YELLOW, eu poderia arriscar algumas hipóteses: acho que esse ser é menos eu e mais o outro. Ele é mais passagem, mais caminho do que ser centrado e individuado. Fiquei pensando qual diferença seria de fato ameaçadora à raça humana? Ora, uma existência que não se acha o centro do universo seria uma ameaça ao homem. Uma existência que não vê no "eu" a salvação do planeta, sem dúvida, é uma grande ameaça.
A sensibilidade de YELLOW é a de ser passagem, é a de ser caminho, para o outro, para outras narrativas; narrativas da alteridade. A sensibilidade dele - que é quase um super poder - é para o fora, não para si, não para o dentro apenas. É, desde já, uma crítica ao antropocentrismo. Ele tem a habilidade de ser frequentado pelas coisas mais do que apenas ser alguém. Ele, nesse sentido, vive a vida em tempo espiralado, em simultaneidade, junto ao eterno retorno.Hoje, após mais de um ano desde essa postagem, desconfio dela integralmente. Não da honestidade dela, isso tinha, mas sinto-me utilizando palavras da vez, modismos da linguagem e da conceituação. Ser caminho, ser passagem, ser alteridade. Ora, por favor. Tudo um pouco excessivo, hoje observo. É preciso se lembrar de sempre ser rigoroso, implacavelmente rigoroso: qual é a especificidade do personagem Yellow? Eis que o capítulo de Cassiano Sydow Quilici - que mencionei na postagem anterior e logo em seguida finalmente li - me abriu um caminho promissor e que já vinha, por outras vias, se procriando em mim.
Ele diz respeito ao humor. A especificidade de Yellow é o seu humor - ou como afirma Martin Heidegger - sua abertura essencial, sua disposição, que é o traço fundante da sua presença. Ainda estou lendo o texto de Quilici como também vasculhando o tratado "Ser e Tempo" do Heidegger, mas já é algo muito mais afiado e concreto para mim do que dizer que esse personagem é passagem, é alteridade, é isso ou aquilo. Para o primeiro encontro, de amanhã, já levarei esse texto do Quilici impresso. Tenho a sensação que ele valoriza as intuições e desejos do Márcio (pelo humor, não propriamente esse humor filosófico que Quilici nos revela) e também os meus desejos criativos e investigativos.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
Aquilo que ficou, o que continua
Ele (não sei se há gênero marcado) cumpre alguma penitência no planeta Terra. Pensei que não há essa coisa de pai e mãe em Marte. Há apenas mãe. E nem sequer chamamos mãe desse nome. Cada ser que nasce é mãe de um único ser. É uma lógica, talvez, sobre continuidade. Eu (ser marciano) nasço e quando estou a tantos anos de minha morte, dou à luz um ser que continuará meu caminho. Só que olha o que aconteceu: o ser que gerou o nosso personagem não quis perde-lo. Vamos chamar esse ser de mãe. A mãe dele o fez nascer e, talvez, por amor, não quis perde-lo. Ela (a mãe) fez alguma coisa, cometeu algum crime que a faria viver mais tempo junto ao seu filho (não sei se eles falam filho). Só que essa trapaça foi descoberta e como punição, Ele foi expulso de Marte deixando sua mãe lá, sozinha, perecendo até o dia de sua morte. Ele, agora, em penitência na Terra (sem saber o motivo), traz consigo algo (seria uma memória) de sua “mãe”. Ele vive e no seu rastro um pequeno punhado de imagens amareladas. Ele está prestes a completar o número exato de anos que sua “mãe” teve. E quando esse número se completar ele voltará à Marte. Uma penitência que ele paga pelo amor que a ele foi destinado. Saberiam amar os marcianos? Por que a puniram por conta disso? Fato é que na Terra é onde ele se descobre alguém (independente de raça, cor ou gênero). Ele descobre um punhado de coisas só que agora é hora de partir. É hora de, mais uma vez, morrer. Deixar de ser. O que ele aprendeu? Quem ele conheceu? O que ele descobriu? O que ele poderia nos ensinar? Tal como uma maldição, ele hoje precisa provar que sua penitência funcionou e que algo foi feito durante esse tempo. Ele precisa provar que aprendeu alguma coisa. Ele, tal como um escravo, precisou gastar seu corpo e oferecer à Marte algum saber sobre o homem (raça considerada um tanto perigosa). Talvez ele venha a nos dizer um pouco sobre o ser humano. Sobre o amor, a finitude das coisas, a dor, a saudade, essas coisas humanas por excelência e que, por isso mesmo, movem guerras, alegrias, dores e revoluções sem fim.Uau. Nem é pouca coisa assim, mas é aquilo que ficou. Nasceriam mil criações a partir desse breve parágrafo. Interessa-me, profundamente, a coisa da mãe. Essa coisa da continuidade, do amor, dos crimes (desmedidas) de uma mãe para proteger - amar em segurança - sua cria. Acredito que interesse também ao Márcio. O que percebo?
Uma trama análoga. Melhor: duas tramas em analogia. A trama ficcional do marciano e a trama objetiva, real, do Márcio Machado e desse mundo em que vivemos agora. Lanço-me uma pergunta: o que uma trama pode revelar da outra? Quais dispositivos exclusivos essas tramas possuem que poderiam, se usados na trama outra, revelar algo nevrálgico, único, rigoroso, implacável?
Essas são as questões que nesta noite de segunda-feira, 07 de janeiro de 2018, consigo abrir. Abrir sem força, cuidando da alegria e da tranquilidade que havia mencionado anteriormente. São questões muito boas porque abrem e não fecham, não ainda. Questões que me fazem encontrar possíveis enraizamentos para um projeto ainda sem solo, sem maquinação para se nutrir. É assim mesmo, não me assusta, me anima.
Registro aqui o que farei a seguir (é um modo de me comprometer): vou dar uma folheada no livro "O ator-performer e as poéticas da transformação de si" de Cassiano Sydow Quilici. Intuo, honestamente, que há algo do informe (que me remete à Bataille) e da mescla ator-performer (outra analogia) que pode me nutrir nesse início em sala de ensaio.
sábado, 5 de janeiro de 2019
Início dos ensaios
Semana que vem iniciamos o trabalho em sala de ensaio. No entanto, como nunca antes, tenho me perguntado o seguinte: para que serve a sala de ensaio? Ou: ensaia-se apenas nela? São questões, aparentemente, desimportantes, mas me ocupam por inteiro.
Quando penso nesse processo criativo penso em poucas palavras: alegria e tranquilidade. Alegria eu penso porque precisa ser gostoso (e ser gostoso não é ser fácil, honestamente adoro dificuldades, mas precisa ser gostoso, apaixonante, cheio de tesão). Tranquilidade eu digo porque não quero corda no pescoço, não quero criar num ambiente opressor e exaustivo.
Assim, eis o que tenho para esse início. Não tenho uma dramaturgia escrita nem sequer esboços, rascunhos, anotações para aquilo que inevitavelmente virá. Não tenho planejamento de ensaios, exceto um convite feito aos integrantes do Inominável que não apenas o Márcio: venham para os primeiro ensaios.
O que penso é isso mesmo: com alegria e tranquilidade, ouvir e confabular com minhas amigas e meus amigos acerca dos possíveis que esse projeto anima. Ir compondo com calma e desejo explícito. Já soube fazer de outras formas, inúmeras outras, mas agora sinto que Yellow me pede - ou apenas me possibilita - esse modo de.
Como em todas as criações do Inominável que tive o prazer de dirigir, esse blog, antes de um diário informativo, torna-se um presente amigo e confidente. Não sabia o que ia escrever, mas descobri pelo simples fato de me dispor a isso. Que assim siga sendo. Disposição, nunca certezas.