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segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

E, com tranquilidade, ele vai chegando


Mudança de Direção

De fato, na última semana, muito aconteceu nesse processo de criação. Foram quatro encontros em uma semana, eu levei um capítulo escrito (em forma de romance, mesmo) e começamos a fazer pequenas composições de cena, além - é claro - de muita conversa. Tivemos reunião com o patrocinador, firmando uma série de definições sobre o projeto, as contrapartidas e a estreia.

E algo mais, essencialmente, uma mudança de direção. Compreendi que eu deveria convidar o outro integrante da companhia, até então creditado como diretor assistente, para dirigir YELLOW BASTARD junto a mim. Assim, a partir de agora a direção do espetáculo é de Andrêas Gatto e Diogo Liberano porque é assim que estamos criando: juntos ao Márcio, por meio de falas simultâneas e uma escuta cada vez mais afiada.

No último fim de semana, fizemos uma breve e longa reunião aqui em casa para entender os caminhos do processo, para afirmarmos - junto ao Márcio - escolhas um pouco mais precisas e que possam tornar o processo - para o ator - menos especulativo e um pouco mais estruturado. Compreendemos assim que temos alguns procedimentos a serem repetidos (com variações, obviamente) no decorrer dos próximos encontros:

- preparação (cuidado do corpo)
- leitura e análise do texto
- composição
- improvisação
- psicofísica e atmosfera

Em breve, gastarei um tempo no blog resumindo os encontros ainda não postados. Mas fato é que a descoberta do romance mudou tudo. Ao escrever essa narrativa (longa) num formato (tradicionalmente reconhecido como) romance, eu me livro de ter que escrever para a cena e para o ator e dou a todos nós um universo muito mais complexo e intrigante do que somente indicações de cena. É uma intensificação, sem dúvida, do que venho pesquisando como dramaturgo.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Da situação como concentração de movimento

Sigo eu nessa jornada teórica-intempestiva, profana mesmo, usando tudo ao meu redor para seguir abrindo caminhos. É assim como faço, é como gesto de fazer, me alimenta a potência, me faz sorrir, amanheci sorrindo. Faz tempo que penso na palavra situação como uma grande catalisadora da criação teatral (dramatúrgica e cênica). O que seria, nesse maremoto de possibilidades, isso que chamo de situação?

Recorro ao dicionário e descubro que a palavra "situação", substantivo feminino, possui várias acepções possíveis. Cito algumas: 1) ato ou efeito de estar situado; 2) lugar, localidade; 3) condição, caso; e 4) o estado dos negócios, combinação de circunstâncias. Pois bem: situação seria algo como estar situado numa localidade (ou condição) específica. No caso de uma peça de teatro, provavelmente (assim estamos acostumados), tal especificidade diz respeito a uma conjuntura especial, única, aquela que acontece ali no aqui-agora da performance teatral.

Por que tenho pensando tanto em situação como esse catalisador teatral? Ora, parece-me óbvio, mas, desde Sinfonia Sonho (2011), descubro a situação como um modo de revelar o drama. É como se ele estivesse aprisionado nas ideias e imagens, sinopses e conflitos da criação, mas precisasse de um modo específico para vir a ser. Então, quando eu coloco o drama em uma situação específica - e, por isso, especial e intencional (artificial e artística) - ele me revela aquilo que eu nem sabia, mas que mora dentro da coisa toda, que - de um jeito ou de outro - anima aqueles seres a aparecer.

Vou à morfologia das expressões que compõem a palavra "situação". São duas: "situar" + "ção". "Situar" é um verbo que diz respeito a pôr em determinado sítio, colocar. Como sinônimo, podemos dizer que situar é também enxergar-se. Já "ção" - enquanto um sufixo - é uma terminação usada na formação de substantivos derivados de verbos que trazem em si a ideia de ação, de processo. Esse sufixo invoca à necessidade de um agente causador dessa ação.

Muita coisa. Tento inventar algo a partir disso: situar é enxergar a si mesmo num sítio onde se foi colocado ou no qual determinado alguém se colocou. No entanto, este sítio - esta situação - constitui-se como um movimento, um acontecimento: algo em processo. Assim, a situação - tal como a vejo agora - denota uma transformação, um percurso. Lembro-me de Sinfonia (e naquela época isso me era tão intuitivo): na primeira cena, uma família está num carro, numa viagem de mudança para outra cidade. Estão cansados, quase concluindo uma longa viagem: as crianças estão já amuadas com o longo percurso, querem chegar e há as expectativas para o dia seguinte, com a casa nova etc.. Ou seja: há um presente e um futuro premente. Na mesma situação, há o antes, o instante daquele agora e uma antecipação ligeira do que virá. A situação é o movimento concentrado.



A situação é a concentração do movimento. Por isso, quando penso em situações para Yellow, penso em contextos específicos que não podem ser quaisquer: precisam, antes, dizer minimamente sobre um antes, assegurar um instante presente e premeditar aquilo que virá. Por isso, pergunto, em quais situações colocar Yellow? Talvez em situações cujos títulos sejam terminados em "ção". Risos. Atualizo, a seguir, os nove momentos, as nove situações que tenho listadas para a composição do percurso dessa dramaturgia:
CRUCIFICAÇÃO - Yellow gera sua cria, em Marte, e é crucificado. 
DESCONTINUAÇÃO - Yellow contamina Marte com o amor terráqueo. 
INFERTILIZAÇÃO - Yellow assimila a lógica reprodutiva de Marte. 
INSIGNIFICAÇÃO - Yellow é bem sucedido em mais uma defesa. 
INTERVENÇÃO - Yellow em mais uma sessão de terapia. 
MEMORAÇÃO - Yellow enterra a sua mãe terráquea. 
OBSERVAÇÃO - Yellow abre os olhos e está preso numa cela. 
ORIGINAÇÃO - Yellow se reencontra com o ser que o originou. 
TONAÇÃO - Yellow retorna a Marte, após quase cinquenta anos.

No entanto, algumas palavras não me soam tão belas, não tão rítmicas, não tão sedutoras assim. Refaço as apostas, mantendo os propósitos acima descritos;
CRUCIFICAÇÃO - Martírio 
DESCONTINUAÇÃO - Amor 
INFERTILIZAÇÃO - Estado 
INSIGNIFICAÇÃO - Ignorância 
INTERVENÇÃO - Terapia 
MEMORAÇÃO - Mãe 
OBSERVAÇÃO - Cela 
ORIGINAÇÃO - Origem 
TONAÇÃO - Regresso

Interessante experimentação a situação do amor, o amor enquanto situação. A situação da cela, a cela enquanto uma situação. A situação do estado, o estado enquanto uma situação. A situação da ignorância, da mãe, do martírio, a situação da origem e do regresso, a situação da terapia. Assim, eis as situações - em ordem alfabética - que a dramaturgia pretende desdobrar:
AMOR
CELA
ESTADO
IGNORÂNCIA
MÃE
MARTÍRIO
ORIGEM
REGRESSO
TERAPIA

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Yellow é um desculpante?



Os desculpantes

[...]
Se sentir ou não se sentir culpado. Acho que tudo depende disso. A vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas como essa luta acontece numa sociedade mais ou menos civilizada? As pessoas não podem se atirar umas sobre as outras sempre que se encontram. Em vez disso, tentam jogar no outro o constrangimento da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá aquele que reconhecer sua culpa. Você vai pela rua, mergulhado em pensamentos. Em sua direção vem uma moça, como se estivesse sozinha no mundo, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita, indo direto em frente. Vocês se esbarram. Eis o momento da verdade. Quem vai insultar o outro, e quem vai se desculpar? É uma situação-modelo: na realidade, cada um dos dois é ao mesmo tempo o que sofreu o esbarrão e o que esbarrou. E, no entanto, há os que se consideram, imediatamente, espontaneamente, os que esbarraram, portanto culpados. E há os outros, que se vêem sempre, imediatamente, espontaneamente, como os que sofreram o esbarrão, portanto no seu direito de acusar o outro e de fazer com que este seja punido. Você, numa situação como essa, você se desculparia ou acusaria?
[...]

A festa da insignificância – Milan Kundera

Encontro #4

Em nosso quarto encontro (terça, 15 de janeiro de 2019, de 09h/13h no CCBB), estivemos apenas eu e Márcio.  Levei uma nova versão sobre o que é, quem é YELLOW BASTARD. Lemos e conversamos muito. Por se tratar de uma criação em criação, posso afirmar que tudo ainda está em aberto e que, pouco a pouco, encontramos os sentidos que se tornam mais sensíveis a nós e, por extensão - imaginamos -, ao nosso espectador. Destaco alguns aspectos determinantes que foram conversados:

- a questão das idades em Marte, quando um ser gera outro, quantos anos geralmente dura uma existência marciana etc.;

- percorremos a vida de Yellow desde sua infância: foi amamentado (e isso contribuiu para a coloração de sua pele ir ficando branca no correr dos anos); não viu muitos espelhos (logo, não tomou compreensão de si e muito menos investiu demasiada importância na noção de indivíduo); suas festas de aniversário, feitas pela mãe terráquea, sempre foram muito amarelas, dando a ele alguma sensação de pertencimento ao mundo; na adolescência, respondia aos bullyings com leveza e ingenuidade e, como que por distração, sobreviveu a todos eles; adulto, tornou-se advogado de defesa, especializado em causas relacionadas aos direitos humanos; após sua formação, foi compreendendo ser preciso atuar num drama social, cimentando um pouco a sua bondade para dar lugar a um homem bem-sucedido e capaz de sobreviver na selva da cidade;

- o aspecto crístico (de Cristo) é o seguinte: sua bondade, nutrida pela mãe terráquea, sempre foi rebatida (fosse nos bullyings vividos na adolescência ou nas dificuldades da vida adulta e profissional), porém, Yellow sempre respondeu a tudo de modo a se desculpar, nunca sofrendo os problemas, mas sempre tentando compreende-los a fim de melhorar a si mesmo e a situação. Porém, em analogia ao percurso de Jesus, podemos pensar: sendo esse ser libertário, confiante e praticante do amor independente das dificuldades, Yellow seria prontamente crucificado, seria morto. A questão então é: ele, progressivamente, vai cimentando essa bondade em si mesmo e se tornando um homem duro, não propriamente violento ou rude, mas com um brilho mais apagado. Quando tudo é revirado e ele volta a Marte, aí sim este homem escondido dentre dele, sua versão crística, finalmente precisa aparecer, pois em Marte a violência é muito maior e o amor, por extensão, também precisa ser muito mais destemido; para concluir seu percurso, poderíamos dizer que o Yellow Bastard que se faz surgir na crise de meia idade desse "homem" nada mais é do que o retorno à própria infância;

- três questões fazem o amarelo de sua pele (re)aparecer: 1) a morte da mãe terráquea; 2) a revelação dita por ela, antes de morrer, de que ele não veio dela, de que ele não veio branco; e 3) a conexão abrupta e inexplicável com algo muito distante e intenso (o ser que o gerou e que está, a sua espera, em Marte). Pode-se dizer que a pele amarelar nada mais é do que um intenso processo de alta, altíssima exposição;

- três lutas se abrem a partir dessa virada em sua vida, em sua existência, quase ao completar cinquenta anos: 1) a luta contra a situação de ser alguém que subitamente se tornou amarelo; 2) a luta para compreender, para entender toda essa situação; e 3) a luta com essa espécie de chamado que há fora de si, um chamado de Marte (ele ainda não compreende);

- sobre Marte ser outro planeta a partir da afirmação terráquea: "se esse é o mundo que temos, eu devo então ter nascido noutro planeta". Em outras palavras: Marte, em nossa criação, é um planeta despótico (tal como a Terra está se tornando) e a Terra, onde há o amor, é uma chave capaz de modificar as dinâmicas em Marte.

Um dia antes desse encontro, enviei para uma amiga advogada (Tatiana Alvim) um áudio, pedindo a ela que me dissesse um pouco sobre a sua vida, sua rotina como advogada. Neste quarto encontro, eu e Márcio ouvimos aos seus áudios e vários aspectos sobre ser advogado nos chamaram a atenção:

- a imposição de uma indumentária aos advogados;
- algumas tarefas extremamente burocráticas como "alimentar o sistema";
- tarefas "interessantes" como pegar uma demanda, estudar a causa, encontrar brechas na lei para a defesa de um cliente, enfim, inventar uma história para realizar a defesa (algo, a propósito, muito presente em qualquer filme com advogados e defesas diversas);
- NESSE PONTO, INVESTINDO NAS ANALOGIAS QUE VENHO PERSEGUINDO, DESTACO >>> o advogado é também um contador de histórias <<< ELE ENTENDE A SITUAÇÃO, MONTA NO PAPEL A SUA NARRATIVA E FAZ A SUA DEFESA, A SUA PERFORMANCE;
- também sofre o drama da consciência, tendo que ser (defender) aquilo que você não é (não acredita);
- a boa sensação de defender algo que o seu senso de justiça defenderia;
- e as relações de trabalho, os encontros e amizades que acabam sendo criados (minha amiga Tat descreve um gesto feito por uma funcionária com a qual ela não se dava muito bem, um gesto de profundo cuidado e bondade).

Por fim, compartilho a seguir algumas imagens de uma história em quadrinhos que o Márcio levou como referência, ASTERIOS POLYP, de David Mazzucchelli:




terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Encontro #3


O que sabemos sobre YB –

O encontro de hoje, terceiro encontro desde que começamos 2019, foi extremamente revelador. Nele estavam presentes eu (diretor e dramaturgo), Andrêas Gatto (diretor assistente) e Márcio Machado (ator). O objetivo desse encontro, a partir de um planejamento feito por mim, foi imaginar a narrativa desta criação em dois momentos (como se ela acontecesse em 02 atos): um primeiro momento no planeta Terra e o momento seguinte em Marte.
Levei impressa uma breve “cena” em que o personagem Yellow Bastard, aprisionado numa cela no planeta Terra, faz um pedido ao vigilante que o vigia. A seguir, transcrevo a cena já adulterada pelo jogo que fizemos (o jogo do “desfigurar” que consistia em, sobre o papel impresso, riscar o “excesso” de palavras do texto, desorientando a trama escrita e abrindo outras possibilidades):


YELLOW se aproxima da grade frontal da cela onde está preso. Posiciona, em frente à ela, uma cadeira. Senta-se, mira o longo corredor cujo fim não se vê e fala ao Sentinela que mora ao fim desse corredor.

Sugou
Chupou
Comeu
Mastigou as melhores histórias que tinha
Estou seco agora
É justo
Você precisava ouvir
Outras histórias
Não te deixam
Livro ou televisor
Celular computador
Nada disso aqui te deixam
Te sinto
Por isso pediu
Que contasse histórias
Para viajar
Sem sair do lugar
Mas seco agora
É minha vez de pedir
Alguma coisa
Não suas histórias
Mas a sua
Total confiança

Aproximando o rosto da grade.

Caro Sentinela,
Posso?
Pelos sorrisos abertos
Pelas lágrimas
Nos seus olhos empoçadas
Uma retribuição
Por tudo isso
Apenas um
Este hoje
Pedido
Que conte
Minha história no depois daqui
Você me pergunta
Partir para onde?
Quando, Amarelo?
E como você partiria?
Trancado nessa cela
Prisioneiro
Do Estado
Ora, ora, meu caro
O Estado
É uma invenção do Estado
Posso partir
Sabes disso
Poderia sumir
Na hora que bem quisesse
Do jeito que inventasse
Em brevíssimo
Partirei, por isso
A urgência do meu pedido
Posso?

O Sentinela assente. YELLOW o percebe e se ergue.

Você me aceita
Aprendeu a me tolerar
Assente o meu pedido
Sem falar
E da minha língua
Para a sua
Meu pedido passa
Sobre a sua língua
Ele agora pousa
E pensa sua cabeça
Pesada, ela coça
Se vou mesmo embora
Você se pergunta
Meu caro, Sentinela
Vou-me mesmo
Já estou quase lá fora

As grades da cela atravessam o corpo de YELLOW, que chega ao corredor intacto e liberto.

Hora exata esta
Estou nas coisas todas
Sou todas elas
Mais nelas do que comigo mesmo
Estou do seu lado
Não se assuste, medo não
Iria de qualquer jeito
Poderia e posso
Nunca estive só
Lá e antes
Dentro e muito no fora
Estive nos cantos todos
Você nem viu
Mas lá estava
Lá estou agora
Por isso
Um pedido
Que conte
Para aquelas
Aqueles que restarem
Depois de mim
Conte-os
Conte o que descobri
O que comigo se deu
Quando estive junto
E colado
E sugado
Comido, chupado e mastigado
Conte
Lhe peço
Por tudo já te contado
Conte apenas Isso
Exatamente isso
Sobre isso
Que vocês teimam em chamar
De amor.

A tela pela qual se vigiam os prisioneiros em suas celas não consegue encontrar YELLOW. O Sentinela aperta um botão de emergência e o som da sirene ecoa sozinho pelo espaço da prisão. O Sentinela cantarola qualquer coisa, mas já não importa mais.

Acima, compartilhei a desfiguração feita por mim. Porém, as outras desfigurações (de Andrêas e Márcio) nos brindaram com outras descobertas. Eis um bom jogo para fazermos outras vezes, desfigurar o texto para ir secando as palavras até chegar ao mais essencial delas). Após tal jogo, pendurei na parede da sala de ensaio duas tiras de papéis (uma com a marca “Terra” e outra com “Marte). Nesses papéis, fomos escrevendo situações que teriam sido vividas por Yellow (em momentos distintos de sua vida), naqueles espaços específicos.
Não descreverei a seguir o que foi escrito nos papéis (tenho esse material aqui comigo), mas sim a conversa que brotou entre eu e os meninos. Por onde começar? (Foi tanta coisa!). Talvez eu pudesse escrever um breve texto (não explicando, mas) afirmando a coisa toda:

YELLOW BASTARD apresenta a história de um marciano que não sabe que é marciano. Não ainda. Ele chegou no planeta Terra em uma madrugada quente de novembro de 1974. Logo ao chegar, aterrissou no colo de uma mulher com seus quase trinta anos. Ela estava jogada sobre o terreno do lado de fora de sua casa, logo após ter sido espancada por seu namorado e ter perdido o seu filho, ainda em gestação. No momento em que Yellow é enviado à Terra, essa mulher acabou de enterrar o feto dessa criança que não pôde nascer. Quando ela acorda, sobre a terra do quintal, tem em seus braços um bicho estranho e amarelo, miúdo e sonoro. Talvez por muita dor (ou sabe-se lá por qual motivo), ela recebe e aceita essa estranha criatura e faz dela o seu primeiro e único filho, criando-o desde então. Ela amamenta a criatura que, num percurso de quase cinquenta anos de vida na Terra, vai ficando branca, com feições ainda mais humanas. Yellow aprende a linguagem dos homens, estuda em escolas, presta o vestibular, se muda para uma cidade maior, faz amigos e inimigos, sofre bullying quando e, ainda assim, se torna um brilhante advogado. Em 2018, porém, sua mãe terráquea é atropelada no centro de uma grande cidade[1]. No hospital, em seu leito de morte, “seu filho” a tenta socorrer, mas a gravidade da saúde dela o coloca numa situação extremamente instável: ele entra em contato com sensações ainda não vividas, especialmente a dor dilacerante que é perder alguém que se ama. É ali, naquele hospital, onde o corpo do marciano – que não sabia ser marciano – reage de modo inquestionável: irritado por ser impedido de tirar sua mãe do hospital (para leva-la em direção à casa onde ele julga ter nascido), subitamente sua pele começa a amarelar, como numa reação química, ele bruscamente fica amarelo, para desespero de sua “mãe” e terror das enfermeiras e médicos de plantão. Uma noite em uma vida inteira e agora ele está amarelo, completamente amarelo. Ele arranca a mãe do hospital e a leva até sua antiga casa, enterrando-a no mesmo solo onde, outrora, ele enterrou seu filho biológico (que sequer chegou a nascer). Prestes a morrer, a mãe terráquea tenta se desculpar por ter escondido de seu “filho” sua real origem (que nem mesmo ela soube dizer qual era). Após ser enterrada por Yellow, num corte lancinante e doloroso, ainda no terreno da casa de sua infância, jogado sobre a terra seca e escura, ele é atravessado por um grito, um descontentamento profundo (que ele ainda não sabe, mas vem de sua “mãe original”, o ser que o gerou, que ainda está em Marte). É que em Marte não há isso de pai ou mãe, nem de homem ou mulher. Em Marte, só o que há são seres – marcianos – que obrigatoriamente vão gerar outro ser, apenas um outro ser. No momento em que um novo marciano é gerado, a morte do ser que o gerou começa a sua contagem regressiva. No caso da “mãe” de Yellow, o que aconteceu – pela primeira vez – foi justo um crime, uma traição ou trapaça. Por não querer se ver longe de seu filho, por não querer simplesmente abandoná-lo ao destino, ela o teve, ela o fez nascer e o escondeu junto a si. No entanto, quando esse crime é descoberto, como punição, a mãe de Yellow continua viva, porém, seu filho recém-nascido – o próprio Yellow – é enviado para o planeta Terra, onde deverá permanecer ignorante e em penitência até o momento em que estiver prestes a completar cerca de cinquenta anos (mais ou menos a idade em que os marcianos geram suas crias). No dia em que enterra sua mãe terráquea, talvez pela primeira vez, Yellow gasta um tempo olhando em direção ao céu. O grito de sua mãe biológica talvez seja escutado por ele. Sua pele já está amarela, a desconfiança em relação ao mundo e a tudo é imensa; mais que tudo, ele sente. Não é apenas a pele, não apenas o corpo que, subitamente, despertou. Há uma dor de antes, uma indagação persistente que ele não sabe dar conta, posto nunca tenha estado junto a ela, ao menos não de maneira tão evidente. Ele mira ao céu e se pergunta como o impossível, subitamente, se torna possível. Durante quase cinquenta anos, na Terra, ele viveu uma vida considerada normal, se tornou um grande advogado. Atualmente, trabalhava num grande escritório de uma grande empresa. Tudo muito clichê, tudo muito grande, tudo muito branco. Às sextas, ia ao happy hour com os amigos do trabalho e, sentia, que progressivamente estava começando a se apaixonar por alguém. Yellow se tornou um homem modelo do sucesso, branco, advogado, bonito inclusive. Essa foi a vida que sua mãe terráquea conseguiu que ele tivesse. Uma vida bela, sem dúvida, mas escondendo – sob tanta maquiagem – quem ele realmente era e quem, inevitavelmente, um dia ele descobriria ser. Tudo isso acontece assim, de súbito, no dia em que ela morre: esse ser que foi escondido dentro dele próprio, finalmente, aparece. Aos poucos, primeiro, aos poucos, mas no correr dos dias, o amarelo toma a pele por completo, o corpo parece ser revirado e uma intensa e imensa disponibilidade ocupa cada pedaço da atenção daquele homem já não tão homem assim. Ele se pergunta, certa vez, mirando o rosto num espelho de banheiro: quem está trancado aí dentro, hein? Quem está preso dentro de mim? Ele não sabe responder, mas sente que a pergunta é o mais perto que ele pode chegar da vida. E é sentindo tudo, de novo e renovadamente, que ele vai percebendo ser mais do que sempre soube. Uma imensa disponibilidade o faz sentir as coisas ao redor, próximas a ele ou não. Uma escuta muito calibrada o faz ouvir os passos dados por baratas em ralos da grande cidade. As estrelas, o sol, o céu; tudo conversa com ele e ele, com tudo, também conversa. Como é possível, ele se pergunta, de um dia a outro perceber que dentro de você pulsa outra coisa que não aquilo que você julgava ser a sua vida inteira? Eis o dilema. Dentro dele um amor muito grande, transbordante, um desejo radiante de contágio, de aproximação, de abraçar o mundo inteiro e contar ao mundo a sua confissão. Para além da dor de perder sua mãe – e, talvez, justamente por conta dessa dor – ele compreende ser feito de algo mais, descobre ser feito de amor; uma aderência às coisas e aos seres do mundo. Um amor amoral, imenso, amor que ultrapassa o que pode e o que não pode. Ele descobre-se amante da vida, de tudo ao redor, num movimento intenso de querer a tudo, a todos, de só querer amar, sem motivo capaz de explicar tanto desejo. Era isso o que esteve preso esse tempo todo dentro de mim? É isso o que essa vida humana faz morrer, prende, enclausura? E é nesse momento, em algum ano entre 2024 ou 2025, que Yellow é preso numa penitenciária de segurança máxima. Ele é considerado estranho, para além da pele amarela, porque é amoroso ao extremo. Por isso é aprisionado numa penitenciária nova aos padrões da época. Já não importam os recursos tentados, de nada serve ter-se tornado advogado: ele está preso e ali ficará. A não ser que. A não ser que perceba, honestamente, que é chegada a hora de partir, a hora de concluir o seu destino. É hora de voltar a Marte. E ele volta. É madrugada na Terra, ele ultrapassa as barras de ferro de sua cela. Ele caminha até um espaço aberto, já fora da prisão. Ele não sabe, mas está descobrindo. Ele não é daqui, dizem as lágrimas que escorrem por seu rosto forte e franzino. Ele vai sumindo, no ar, vai virando ar mesmo, como num filme de ficção científica, ele é tudo aquilo que a ele se aproxima. E lá em cima, na imensa distância, ele chega em Marte, é um momento único, amplamente esperado. Ele de frente a uma grande e imensa multidão de marcianos, seres como ele, amarelos como ele. Ele então reconhece sua mãe. Ela, enfim, morrerá. Ele também, agora há de gerar um filho e morrer. Mas não. Ele tenta segurar o tempo. Ele não quer morrer, não porque se oponha ao governo marciano, mas porque descobriu algo na Terra que pode valer uma vida inteira. Ele tenta se explicar, os marcianos não compreendem. Os marcianos temem a raça humana, raça da guerra, do poder, da corrupção. Ele tenta novamente. É só o amor, ele diz a si mesmo, remexendo-se para ser entendido, ele afirma a si mesmo: o amor é capaz de dar um jeito nisso tudo, em tudo isso. A despeito de tudo, é só o amor que faz algum sentido. É só o amor.


E então, nós três – no encontro #3 – nos perguntamos sobre a imagem que queremos colocar diante do nosso espectador. Eis um homem branco, um advogado, um homem atarefado, correndo o dia-a-dia, com problemas comuns (sua mãe no hospital, recém-atropelada). Um homem que, num dia qualquer (ou, não tão qualquer assim), descobre trazer dentro de si – trancafiada – outra existência, outra potência existencial. Um marciano que foi tornado homem na tentativa de reter, controlar e vigiar, na tentativa de colonizar sua estranheza que, por extensão, é também sua força, sua beleza.

É como se perguntássemos aos nossos espectadores: quem é o estrangeiro que vive dentro de cada um? Quem é o estranho, o desfamiliar, a aberração, o abjeto, o outro que você mata por que não tem coragem de assumir que é você próprio? Perguntas para os próximo encontros.



[1] Esse trecho da história de Yellow foi escrito no roteiro cinematográfico “BASTARD” de Diogo Liberano.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Encontros #1 e #2

Nossos primeiros encontros em sala de ensaio aconteceram na quinta e na sexta-feira, dias 10 e 11 de janeiro de 2019, de 09h às 13h, na Sala de Ensaios do CCBB Rio de Janeiro. No primeiro, estiveram eu, Márcio Machado, Clarissa Menezes, Andrêas Gatto e Laura Nielsen. No segundo, eu, Márcio e Clarissa.

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Abertura e especulação: sobre Yellow Bastard
De alguma forma, foram dois encontros voltados para um mesmo propósito. Partindo de um resumo bastante simples acerca da história dessa nova criação, abrimos - em roda - perguntas, imagens, afirmações, dúvidas que pudessem dinamitar ainda mais os sentidos que, porventura, já estão por demais fixos. Assim, como era esperado por mim, coisas novas se abriram e outras se tornaram menores, menos importantes.
Como saldo desses encontros, deparamo-nos com o mais importante desafio: trata-se de uma criação não no sentido de que é uma nova peça da companhia, mas no sentido de que a fábula sobre Yellow Bastard é uma invenção por si só, diz respeito a um extraterrestre no planeta Terra numa trama sobre maternidade, traição, intolerância etc. Ou seja: não há como operarmos criativamente como se fosse apenas a criação de uma peça. É a criação, sobretudo, de um universo, uma linguagem, um modo de usar e manusear a linguagem (o corpo, a língua falada, os gestos e ações, codificações inúmeras...).

A importância da poesia
Do primeiro ao segundo encontro, percebi que a importância então residia primordialmente na compreensão de que estamos criando um poema. Eu, dramaturgo, escrevo um longo poema. E é isso. Como a cena teatral vai interpretá-lo, como vai coloca-lo no palco, isso já são questões ultrapassadas. A cena não precisa interpretar, a cena não precisa colocar nada. A material textual a ser composta não será transcrita em cena, mas estimulará o aparecimento da cena, estimulará a composição de atmosferas, ações, gestos e sensações que, por vezes, vão muito além do texto.
Assim, levei alguns poemas para que lêssemos. Levei breves falas sobre a linguagem da poesia, sobre as funções da linguagem, para que começássemos percebendo o nosso próprio corpo e a sua viciada maneira de explicar, reduzir tudo ao fechamento de um sentido capaz de explicar toda e qualquer coisa.

Contar a história da peça
No segundo encontro, fizemos esse jogo. Havíamos, no primeiro encontro, contado a história da peça. (Obviamente, descobrimos novas dobras, como por exemplo: Yellow está preso na Terra, mas se liberta e volta a Marte; quando chega em Marte, é aos marcianos que ele conta tudo aquilo que vivenciou aqui. Márcio, no segundo encontro, insiste que algo foi apreendido aqui e que Yellow não tem a mínima pretensão de abandonar isso ao ir embora da Terra). Ou seja: tínhamos muitas especulações sobre a fábula, bem como um material escrito - primeiro - que eu havia entregue impresso.

Ele quer reencontrar
a sua mãe
assim que ele chegar
no planeta amarelo
ele reencontra
a sua mãe
no meio de todos
os marcianos
amarelos
ele
reencontra
a sua mãe
ele sabe
ser mais
de uma coisa
poeira
mil
baratinhas

O jogo consistia em assumir uma posição no espaço da sala e contar sobre o que é a peça, contar a história de Yellow Bastard. Estávamos eu, Clarissa e Márcio no segundo encontro. Destaco algumas revelações que tivemos juntos e reitero o motivo que nos fez acessar tais revelações: estávamos jogando, de modo profano. Não tínhamos obrigação de fazer nada estipulado de antemão. Mesmo que eu tivesse dado objetivos ao jogo, eles foram se perdendo e anunciando novos e outros lugares. Em outras palavras, já em resposta a uma possível e excessiva mentatividade que diagnostiquei no primeiro encontro, estávamos "apenas" nos divertindo. E isso abriu os seguintes novos lugares para a criação:

- um grito
- a mão cobrindo a boca
- um riso preso
- uma necessidade constante de retornar do início
- pausas, muito ar
- voz trêmula
- excessiva gesticulação das mãos
- ano 1964
- descrições precisas ("tem muito amarelo...")
- afirmações (como um narrador onisciente: "ele sabe que voltando [a Marte] ele vai morrer. Ele não quer perder o que aconteceu aqui [na Terra]. Ele quer se dividir, se expandir"
- amor intolerância companhia brasil branco cor amarelo intolerância amor companhia
- "ele sabe ser mais de uma coisa: poeira, mil baratinhas..."
- o negativo do amarelo, o azul, muito azul
- um portal preto
- uma panela com pó de café e uma pena, alguma purpurina, "landscape" de Marte
- um pé atrás
- um telefone para Yellow
- falar tudo em inglês
- conversar com o futuro
- medo e amor, tudo ao mesmo tempo
um grito silenciado etc.

 A panela. A superfície de Marte (dentro da panela).


Uma proposta para janeiro de 2019 -
E então faço uma proposta no segundo encontro (ciente de que nosso cronograma ainda é instável, se montando a cada semana): sugiro que até fim de janeiro, a gente consiga montar a peça, fazer uma montagem meio "afoita" no sentido de passar pela história, pelos capítulos dela, passar pelas situações, profanar os modos de fazer e contar a história. Ainda que não seja uma montagem do espetáculo, antes disso, é a montagem da narrativa, a composição da fala.
Após essa montagem, o meu propósito é justamente trabalhar sobre o material com um empenho de DESFIGURAÇÃO do que foi criado. Desfigurar no sentido de apagar traços de literalidade, de moralidade e senso comum; no sentido de procurar e calibrar, de compor a estranheza natural desse extraterrestre (seu modo específico de ler, interpretar e escrever o mundo).

"O menino experimental" de Murilo Mendes (1901-1975)


O menino experimental come as nádegas da avó e atira os ossos ao cachorro.
O menino experimental futuro inquisidor devora o livro e soletra o serrote. 
O menino experimental não anda nas nuvens. Sabe escolher seus objetos. Adora a corda, o revólver, a tesoura, o martelo, o serrote, a torquês. Dança com eles. Conversa-os.
O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros. 
O menino experimental, declarando superado o manual de 1962, corrige o professor de fenomenologia. 
O menino experimental confessa-se ateu e à toa. 
O menino experimental é desmamado no primeiro dia. Despreza Rômulo e Remo. Acha a loba uma galinha. No oco do pré natal gritava: “Champanha, mamãe! Depressa!”. 
O menino experimental decreta a alienação de Aristóteles. Expulsa-o da sua zona, com a roupa do corpo e amordaçado. 
O menino experimental repele as propostas da prima de dezoito anos, chamando-a de bisavó. 
O menino experimental, escondendo os pincéis do pintor, e trancando-o no vaso sanitário, obriga-o a fundar a pop art, única saída do impasse. 
O menino experimental ensina a vamp a amar. Dorme com o radar debaixo da cama. 
O menino experimental, dos animais só admite o tigre e o piloto de bombardeiro. Deixa o cão mesmo feroz e o piloto civil às pulgas. 
O menino experimental benze o relâmpago. 
O menino experimental antefilma o acontecimento agressivo, o Apocalipse, fato do dia. 
O menino experimental festeja seu terceiro aniversário convidando Jean Genet e Sofia Loren para jantar. Espetados na mesa três punhais acesos. 
O menino experimental despede a televisão, “brinquedo para analfabetos, surdos, mudos, doentes, antinietzsches, padres podres e croulants”. 
O menino experimental atira uma granada em forma de falo na mãe de Cristovão Colombo, sepultando as Américas.

Publicado originalmente em Poliedro − Roma, 1965/1966.

"Canção para Guitarra" de Andréi Biéli (1880-1934)


Eu
Estou nas palavras
Tão morbidamente
Mudo:
Minhas sentenças são
Máscaras.
E –
Falo
A vós todos –
– Falo
Fábulas, –
– Porque –
Assim me foi designado,
A razão –
Não a entendo;-
– Porque –
Há tempos tudo se foi no escuro,
Porque – tudo é igual:
Quer eu
Saiba ou não saiba.
Porque só há tédio em toda parte.
Porque a fábula é de esmeralda,
Onde –
Tudo é outro.
Porque há esta avidez dos borrifos
Do prazer;
Porque a difícil
Existência
Para todos –
– Tem um só desenlace.
Porque –
– Em suma,-
– Para que
Este inferno?
Porque –
– Para todos
Há um só fim.
E me rompe este riso.
Do
Destino
De todos –
– E –
– De
Mim.
1922
Tradução de Augusto de Campos

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Expansão

Importa a duração das horas, algumas, poucas, uma ou duas, duas ou quase três. Não contei, mas nisso fiquei, entretido nas revelações. Aquilo que havia escrito na postagem anterior ganhou contornos mais vastos. Comecei a traçar um processo criativo analógico a ser escrito por meio de duas tramas: a trama ficcional e a trama atual (ou real, ou mesmo biográfica). Nossa peça seria então a coexistência dessas tramas: uma trama única feita por duas outras tramas, simultâneas, enoveladas.

Para retomar: trama é o modo como as ações trabalham. Diz Eugenio Barba que trabalham as ações - tudo aquilo que age sobre a atenção, a compreensão, a emotividade e a sinestesia do espectador - por meio de dois tipos de trama: concatenação (ou encadeamento) e simultaneidade. Não é um ou outro, mas sempre os dois modos em dialética. Falar sobre tipos de trama só é possível se partimos da compreensão de que dramaturgia não é (apenas) palavra no papel, mas sim tudo aquilo que age sobre o espectador. Será, portanto, um processo colaborativo de composição da dramaturgia (posto seja ela também cênica, espacial etc.).

Abro já um questionamento sobre as nomenclaturas aqui lançadas: uso o termo trama ficcional e atual mas não de modo análogo às tramas do trabalho das ações (da dramaturgia). Poderia dizer, ao invés de trama ficcional, por exemplo, apenas ficção. Poderia chamar trama atual de atualidade. Talvez seja bom pensar nisso para não exaurir os termos e confundir o que não precisa ser confundido.




Ontem trabalhei bastante. Fiz duas listagem, uma para cada trama, listagens com informações, dados sobre (1) a fábula de vida desse personagem marciano e (2) dados acerca da vida do ator Márcio Machado (neste mundo de hoje, nesta atualidade). Ao fazer tais listas, duas questões se instauraram de modo nevrálgico:

1ª - Qual é a especificidade desse extraterrestre?
2ª - Como a mãe (alguma memória dela ou mesmo a ignorância dele sobre ela) aparece para o marciano?

Sobre a segunda questão: ela é importante porque esse marciano não sabe muito sobre a sua própria história. Penso que o percurso da peça será também um percurso (trágico) desse ser ganhando consciência de si, sobre quem ele é sem saber que sempre foi: um extraterrestre (retomar Nietzsche a a afirmação trágica da vida). Adiante especularei mais sobre isso.

Sobre a primeira questão: já havia especulado algo sobre a especificidade dele nesse blog. Numa postagem datada de 7 de dezembro de 2017 - Qual diferença ele possui? - escrevo o seguinte:
Para além da pele amarela, há algo nesse ser que extrapola a condição humana, que a assusta justamente por ser diferente. Há um saber, uma consciência sensível, uma consistência muito afetiva, estrangeira (que lembra Jesus Cristo) e que diz respeito unicamente ao modo pelo qual esse ser sente. Não é uma questão cultural, de criação, por exemplo. É uma questão fisiológica, interna, do corpo. Diz respeito a uma sensibilidade (uma filosofia prática).
Sobre essa capacidade/habilidade de YELLOW, eu poderia arriscar algumas hipóteses: acho que esse ser é menos eu e mais o outro. Ele é mais passagem, mais caminho do que ser centrado e individuado. Fiquei pensando qual diferença seria de fato ameaçadora à raça humana? Ora, uma existência que não se acha o centro do universo seria uma ameaça ao homem. Uma existência que não vê no "eu" a salvação do planeta, sem dúvida, é uma grande ameaça.
A sensibilidade de YELLOW é a de ser passagem, é a de ser caminho, para o outro, para outras narrativas; narrativas da alteridade. A sensibilidade dele - que é quase um super poder - é para o fora, não para si, não para o dentro apenas. É, desde já, uma crítica ao antropocentrismo. Ele tem a habilidade de ser frequentado pelas coisas mais do que apenas ser alguém. Ele, nesse sentido, vive a vida em tempo espiralado, em simultaneidade, junto ao eterno retorno.
Hoje, após mais de um ano desde essa postagem, desconfio dela integralmente. Não da honestidade dela, isso tinha, mas sinto-me utilizando palavras da vez, modismos da linguagem e da conceituação. Ser caminho, ser passagem, ser alteridade. Ora, por favor. Tudo um pouco excessivo, hoje observo. É preciso se lembrar de sempre ser rigoroso, implacavelmente rigoroso: qual é a especificidade do personagem Yellow? Eis que o capítulo de Cassiano Sydow Quilici - que mencionei na postagem anterior e logo em seguida finalmente li - me abriu um caminho promissor e que já vinha, por outras vias, se procriando em mim.

Ele diz respeito ao humor. A especificidade de Yellow é o seu humor - ou como afirma Martin Heidegger - sua abertura essencial, sua disposição, que é o traço fundante da sua presença. Ainda estou lendo o texto de Quilici como também vasculhando o tratado "Ser e Tempo" do Heidegger, mas já é algo muito mais afiado e concreto para mim do que dizer que esse personagem é passagem, é alteridade, é isso ou aquilo. Para o primeiro encontro, de amanhã, já levarei esse texto do Quilici impresso. Tenho a sensação que ele valoriza as intuições e desejos do Márcio (pelo humor, não propriamente esse humor filosófico que Quilici nos revela) e também os meus desejos criativos e investigativos.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Aquilo que ficou, o que continua

Não foi muita coisa aquilo que em mim ficou. A bem da verdade, não quero que seja tanta coisa assim. Volto ao início para recomeçar o jogo criativo. Em dezembro, escrevi uma monografia para o doutorado intitulada "Não o enunciado do vento, mas o vento apenas", a partir da noção de "experiência interior" de Georges Bataille. Desde quando a conheci, não consegui pensar em outra coisa que não em Yellow. Por isso, nessa monografia, busquei ir nessa noção para avaliar outras possibilidades para o meu corpo enquanto criador nessa nova empreitada.


Pois a seguir, destaco aquilo que me usei para compor as breves reflexões da monografia. Destaco apenas um punhado de palavras que me dão aquilo que honestamente preciso para recomeçar, para começar de novo, começar renovadamente esse processo de criação que ocupa a sala de ensaio do CCBB a partir de quinta-feira (10 de janeiro de 2018):
Ele (não sei se há gênero marcado) cumpre alguma penitência no planeta Terra. Pensei que não há essa coisa de pai e mãe em Marte. Há apenas mãe. E nem sequer chamamos mãe desse nome. Cada ser que nasce é mãe de um único ser. É uma lógica, talvez, sobre continuidade. Eu (ser marciano) nasço e quando estou a tantos anos de minha morte, dou à luz um ser que continuará meu caminho. Só que olha o que aconteceu: o ser que gerou o nosso personagem não quis perde-lo. Vamos chamar esse ser de mãe. A mãe dele o fez nascer e, talvez, por amor, não quis perde-lo. Ela (a mãe) fez alguma coisa, cometeu algum crime que a faria viver mais tempo junto ao seu filho (não sei se eles falam filho). Só que essa trapaça foi descoberta e como punição, Ele foi expulso de Marte deixando sua mãe lá, sozinha, perecendo até o dia de sua morte. Ele, agora, em penitência na Terra (sem saber o motivo), traz consigo algo (seria uma memória) de sua “mãe”. Ele vive e no seu rastro um pequeno punhado de imagens amareladas. Ele está prestes a completar o número exato de anos que sua “mãe” teve. E quando esse número se completar ele voltará à Marte. Uma penitência que ele paga pelo amor que a ele foi destinado. Saberiam amar os marcianos? Por que a puniram por conta disso? Fato é que na Terra é onde ele se descobre alguém (independente de raça, cor ou gênero). Ele descobre um punhado de coisas só que agora é hora de partir. É hora de, mais uma vez, morrer. Deixar de ser. O que ele aprendeu? Quem ele conheceu? O que ele descobriu? O que ele poderia nos ensinar? Tal como uma maldição, ele hoje precisa provar que sua penitência funcionou e que algo foi feito durante esse tempo. Ele precisa provar que aprendeu alguma coisa. Ele, tal como um escravo, precisou gastar seu corpo e oferecer à Marte algum saber sobre o homem (raça considerada um tanto perigosa). Talvez ele venha a nos dizer um pouco sobre o ser humano. Sobre o amor, a finitude das coisas, a dor, a saudade, essas coisas humanas por excelência e que, por isso mesmo, movem guerras, alegrias, dores e revoluções sem fim.
Uau. Nem é pouca coisa assim, mas é aquilo que ficou. Nasceriam mil criações a partir desse breve parágrafo. Interessa-me, profundamente, a coisa da mãe. Essa coisa da continuidade, do amor, dos crimes (desmedidas) de uma mãe para proteger - amar em segurança - sua cria. Acredito que interesse também ao Márcio. O que percebo?

Uma trama análoga. Melhor: duas tramas em analogia. A trama ficcional do marciano e a trama objetiva, real, do Márcio Machado e desse mundo em que vivemos agora. Lanço-me uma pergunta: o que uma trama pode revelar da outra? Quais dispositivos exclusivos essas tramas possuem que poderiam, se usados na trama outra, revelar algo nevrálgico, único, rigoroso, implacável?

Essas são as questões que nesta noite de segunda-feira, 07 de janeiro de 2018, consigo abrir. Abrir sem força, cuidando da alegria e da tranquilidade que havia mencionado anteriormente. São questões muito boas porque abrem e não fecham, não ainda. Questões que me fazem encontrar possíveis enraizamentos para um projeto ainda sem solo, sem maquinação para se nutrir. É assim mesmo, não me assusta, me anima.

Registro aqui o que farei a seguir (é um modo de me comprometer): vou dar uma folheada no livro "O ator-performer e as poéticas da transformação de si" de Cassiano Sydow Quilici. Intuo, honestamente, que há algo do informe (que me remete à Bataille) e da mescla ator-performer (outra analogia) que pode me nutrir nesse início em sala de ensaio.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Início dos ensaios

Semana que vem iniciamos o trabalho em sala de ensaio. No entanto, como nunca antes, tenho me perguntado o seguinte: para que serve a sala de ensaio? Ou: ensaia-se apenas nela? São questões, aparentemente, desimportantes, mas me ocupam por inteiro.

Quando penso nesse processo criativo penso em poucas palavras: alegria e tranquilidade. Alegria eu penso porque precisa ser gostoso (e ser gostoso não é ser fácil, honestamente adoro dificuldades, mas precisa ser gostoso, apaixonante, cheio de tesão). Tranquilidade eu digo porque não quero corda no pescoço, não quero criar num ambiente opressor e exaustivo.

Assim, eis o que tenho para esse início. Não tenho uma dramaturgia escrita nem sequer esboços, rascunhos, anotações para aquilo que inevitavelmente virá. Não tenho planejamento de ensaios, exceto um convite feito aos integrantes do Inominável que não apenas o Márcio: venham para os primeiro ensaios.

O que penso é isso mesmo: com alegria e tranquilidade, ouvir e confabular com minhas amigas e meus amigos acerca dos possíveis que esse projeto anima. Ir compondo com calma e desejo explícito. Já soube fazer de outras formas, inúmeras outras, mas agora sinto que Yellow me pede - ou apenas me possibilita - esse modo de.

Como em todas as criações do Inominável que tive o prazer de dirigir, esse blog, antes de um diário informativo, torna-se um presente amigo e confidente. Não sabia o que ia escrever, mas descobri pelo simples fato de me dispor a isso. Que assim siga sendo. Disposição, nunca certezas.